Hoje eu quero o amor mais profundo: meditação de uma Thaís brasileira e contemporânea distante da conversão


Um ensaio sobre o feminino e o masculino, arte e sociedade, a partir de uma autonarrativa afetiva


Na introdução da minha dissertação de mestrado falo muito sobre minha história. Quase sempre, quando escrevo, falo de mim, mas não por um egocentrismo. É tão somente porque não consigo falar do mundo sem falar da minha experiência de mundo e de como a vida se revela em mim, entendendo que sou um corpo, mas atravessado por inúmeras singularidades, como qualquer corpo, ou seja, sou apenas mais um campo múltiplo desse universo. Acredito que falar de si mesmo é falar do mundo, também escrevi isso na dissertação, e o mestre Muniz Sodré me disse: "você escreve muito bem Vanessa, e sabe o que os escritores sabem, que escrever sobre si mesmo é escrever na linguagem universal". Olha que ouvir isso do Muniz foi uma alegria só. E me lembrei daquela frase de Tolstói: "se queres ser universal, comeces por pintar a tua aldeia". É isso. Gosto de compartilhar das minhas experiências e só posso falar de qualquer coisa a partir do que vivo. Gosto de compartilhar também porque na vida a gente aprende muito assim, e ensina também, troca, se sente mais próximo do outro. Esse texto é um texto de política, arte, sociedade... mas escrito sob essa minha ótica.

Rio, 22 de março de 2013, outono

Já faz um bom tempo, talvez desde a adolescência, que me debruço a pensar sobre o feminino e o masculino. Em questões de gênero, numa perspectiva mais sociológica, mas especialmente me interessa a natureza na relação com a cultura. Não produzi nenhum trabalho intelectual sobre isso, muito embora meus trabalhos acadêmicos tenham sido sobre cultura. Mas perguntam mais sobre o conceito, independente da questão do feminino e do masculino. O pensar sobre é espontâneo, faz parte de mim. Acredito que tenha surgido, em parte, por eu ser uma mulher, curiosa e interessada na criação, em uma família de muitas mulheres. O que me levou a, desce cedo, observar e pensar, e muitas vezes operar esse pensamento de forma muito intuitiva, sobre o universo feminino, logo, a me perguntar também sobre a condição do homem, como se em mim a unidade do diverso fizesse questão de se mostrar o padrão: universo. Pensar sobre o feminino nunca seria possível sem pensar o masculino. E eu sou uma mulher fascinada pelo universo mais íntimo dos homens.

Outro fio que me tece é o da arte, e me atravessa desde muito cedo, passando pela música, o desenho, a poesia e o teatro. Não sei muito bem se por influência da família ou pela minha natureza selvagem, que hoje eu acho que sempre foi bem aflorada. Pelos dois e por muitos outros motivos que me são desconhecidos. Mas sei que sou a única pessoa da família que realmente se interessa profundamente pela genealogia artística dela, assim como por um mergulho nas questões mais profundas da psique. Meus avós maternos se conheceram atuando em uma peça de teatro, em Petrópolis, cidade onde nasci no exato ano de 1980. Na época em que atuava, década de 1940, minha avó foi chamada para fazer chanchada no Rio de Janeiro, mas a mãe dela não permitiu porque ela só tinha 15 anos. Oscarito é nosso primo. Distante, mas primo, e ainda vou investigar essa relação. Minha tia-avó conta que todo fim de semana uma boa parte da família, nesse caso a que morava em Teresópolis, se reunia para descer a serra e ir à ópera no Theatro Municipal. Minha tia-avó odiava, e minha avó, que morava em Petrópolis, separada dos irmãos, sofria, porque ela era quem queria ir todo fim de semana ao Municipal. Esse grupo familiar era formado por atores, músicos e artistas de circo. E eu cresci ouvindo essas histórias das idas à opera, do circo e do teatro, e guardo comigo o cartaz da peça em que meus avós se conheceram e se apaixonaram, onde há uma foto de cada um dos atores e a descrição de seus personagens. A peça, encenada pelo "Grupo Dramático do Departamento Teatral do Bogari Clube", naquele 1947, era Deus e a Natureza, de Arthur Rocha, intelectual negro e progressista do final do século XIX. Também cresci ouvindo muito samba, com a minha avó, meu tio boêmio e minha tia, esposa dele, e minha mãe, que nutre um afeto pela Portela. Minha avó sempre fazia carnavais em casa na minha infância, e era fã do Agepê. Cresci ainda cantando e gravando minhas músicas no Meu Primeiro Gradiente, febre da garotada nos anos 80, e obrigava minha mãe a ouvi-las. E comigo meu primo que hoje é DJ, filho do tio boêmio, também pôde se encantar com a música brasileira. Lembro que ele, bem pequenino, gostava de ficar no carro comigo ouvindo o acústico do Gilberto Gil, quando eu era uma adolescente descobrindo a música. Li muito, desde cedo, muito estimulada pelo meu pai, que assinava o Círculo do Livro e toda vez que ele ia comprar algum livro pra ele, me pedia para escolher também um pra mim. Comecei a escrever poesias aos 12 anos, e nunca mais parei. E desenhei muito também. Meu avô era excelente desenhista, e me ensinou a calcular proporção e a desenhar rostos, mãos e pés. Durante toda a minha infância e adolescência tive cadernos de desenho, e por alguns anos inventei roupas, e minha avó dizia que se eu não fosse atriz, como eu sonhava, eu seria estilista. Ou então, pintora.

O tempo passou e eu fui mesmo para o teatro, mas não fiquei. Apaixonei-me pelo cinema. Ia à locadora com meu pai e saíamos carregados de filmes. Desde cedo fui muito ao cinema com ele, minha mãe e minhas irmãs (sou a mais velha de três mulheres), assistir aos filmes dos Trapalhões. Dormia bem tarde na minha adolescência, vidrada em musicais, shows e clássicos do cinema mundial. Com o tempo passei a frequentar o tão querido Cine Arte UFF, em Niterói, onde assisti muito os novos cineastas, mas também Fellini, Antonioni, Bergman, Glauber. Fiz o meu primeiro vestibular justamente para cinema. Não passei e fiquei arrasada. Depois que a dor se foi, eu me desapeguei da ideia e resolvi tentar um curso novo, Produção Cultural. E passei. Saí do teatro quando comecei a graduação, e esta me levou para um universo rico de símbolos e sistemas de mundo nos projetos em que tive oportunidade de trabalhar e naqueles em que participei ativamente da criação. Nesses 13 anos como produtora, conheci muita gente de diferentes universos e vivi os momentos mais incríveis da vida; alguns assustadores também... Produzi mostras de dança, festivais de música, festivais multimídias, a mostra dos 35 anos do Cine Arte UFF, projetos da Sinfônica Nacional, seminários de cultura, literatura, shows e uma série de concertos. Hoje o trabalho de produção é o que mais me toma o tempo, mas felizmente eu consegui encontrar o tempo para a minha produção artística. 

Depois de muitos anos escrevendo, decidi que iria organizar os poemas e lançar um livro. Em 2006, criei este blog, que mantenho até hoje, e lancei um livro de poemas e um conto chamado Novelo. Em uma determinada época, longe do teatro, triste por estar longe dos palcos, e namorada de músico, resolvi que o que eu tinha que fazer na vida era mesmo me dedicar à música. Assim, fui estudar canto, teoria musical, flauta e piano. Nisso tudo eu descobri que minha paixão era o canto, o espaço do corpo pleno na música, e o espaço do teatro e da poesia na música. Não que um músico não possa estar de corpo pleno na música e ser também um ator ou poeta. Conheço alguns que me levam aos céus com a capacidade de animar neles toda a arte. Mas no meu caso, o canto se tornou isto: a minha forma mais completa de expressão e de conexão com o mistério da vida. Tive duas bandas que mesclavam músicas próprias e versões trabalhando naquele universo musical desconhecido, quando não se consegue classificar uma música, oscilando entre categorias como MPB, rock progressivo e jazz contemporâneo. Já classificaram a gente assim e de outras formas que não me lembro... Depois fiz mestrado, e a música e a poesia viveram minha ausência. Agora, depois de dois anos e meio sem cantar, retornei ao estudo do canto, e desde o meio do ano passado tenho escrito tanto que eu talvez tenha mais poesias de 2012 do que dos cinco anos anteriores de existência do blog somados. Passei por um surto criativo. Claro que boa parte do que escrevi nesse surto não é relevante como poesia, mas apenas como parte do processo de autoconhecimento. No entanto, não tenho dúvida que escrevi meus melhores poemas desde então. E agora, neste exato momento da vida, tomada de uma clareza especial, de uma intuição ainda mais aguçada, e tendo voltado a cantar, preparo um show em que uma das bases é o feminino. A outra base, o Brasil, a música e a cultura brasileiras, riquíssimas e nem sempre valorizadas por nós, que nutrimos tanto um modo colonizado de ser, na esquerda e na direita, dentro de casa, na escola etc, que se não olha para a terra de Tio Sam, olha para o velho continente. Claro, como há coisas incríveis nestas duas terras! Se eu pudesse neste exato momento largar tudo por um mês, eu largava e ia para a Itália, simplesmente porque amo a língua, a arte, o vinho, o jeito italiano de sentir e a comida. Mas muitas vezes, ao olhar demais pra fora, a gente esquece de olhar pra dentro, e acaba necessitando da legitimação externa para "saber" o que é bom. Aconteceu com Villa-Lobos e nas melhores famílias. E assim, não vemos como há beleza e refinamento (num sentido ético-estético-político amplo, e não no sentido civilizatório europeu) no Brasil. Sou absolutamente apaixonada pela música brasileira e sua diversidade, e quanto mais eu conheço e pesquiso, mas me encanto. 

Essa paixão, junto a cada vez mais presente questão do feminino, está me levando para um caminho rico e cheio de pequenas grandes alegrias, como retomar as histórias das mulheres e dos homens da minha família, rever a minha história, repensar minhas rupturas, mergulhar ainda mais fundo no universo da música brasileira e, mais especialmente, das cantoras e dos compositores, e me pensar como mulher selvagem. Estou lendo Mulheres que Correm com os Lobos, da terapeuta junguiana Clarissa Pinkola Estés, e tenho feito viagens diárias pelo que seria esse universo da mulher selvagem, arquétipo que ela identifica à psique e que, sendo arquétipo, é presente em toda mulher, e referência que pode vir a tona através de histórias, lapsos e insights para ajudar as mulheres a pensar a importância de sua atuação no mundo como seres predominantemente intuitivos e geradores. Pode ainda ajudar os homens a pensar sua natureza selvagem (aquela natureza primeira, que acompanha os ciclos da terra) e sua relação de macho com a fêmea selvagem, ou seja, aquela que não se submete, mas se afirma com toda a sua engenhosidade de quem sabe que é peça fundamental da vida, e abraça o mundo com sua perspectiva amorosa e libertária, o que nada tem a ver com libertinagem (não que isso seja um problema), e muito menos com os sentimentos de propriedade que tomam homens e mulheres numa sociedade que normalizou o outro também enquanto propriedade, especialmente a mulher. Mulher esta que, nos momentos de extrema fraqueza, colabora com essa perspectiva e quer tomar o homem também como sua propriedade. Relações complicadas quando se junta romantismo e capitalismo... Mas nesse momento não tenho muitas conclusões sobre tudo isso. Ainda estou mapeando o território. Apenas tenho a sensação de que tudo na minha vida me conduziu a esse momento. E que tudo isso ainda vai me levar a alguma coisa parecida com uma terapia popular (porque precisa ser) que junta canto e dança para colaborar na libertação dos homens e mulheres selvagens...

Coincidentemente ou não, durante o período do mestrado fiquei totalmente afastada da música, até mesmo no trabalho de produção, quis a vida, e muito voltada a um universo masculino particular, o do meu ex-namorado, um filósofo, ao qual me dediquei em tentar mapear e compreender, abrindo mão de pensar prioritariamente sobre minha condição de mulher e sobre os meus desejos mais profundos ligados ao meu corpo, à música e a poesia. É claro que essa "escolha" me ajudou muito a me conhecer, clareza que eu tenho hoje, e ao me debruçar sobre o universo dele, que misturava para mim um cenário intrigante e fascinante, acabei por me debruçar sobre o feminino também. Assim como os acontecimentos posteriores à nossa separação também me trouxeram até aqui onde me encontro agora: uma mulher mais leve e mais alegre, um ser humano mais inteiro e mais interessado no amor incondicional como condição de existência da vida e das relações; uma mulher se pensando mulher e interessada em como as mulheres se veem mulheres; uma mulher fascinada pelo universo intuitivo e singular dos homens; uma mulher que sabe que não vive sem o horizonte do mar (uma paixão que não cabe nesse texto mas que é definidora da minha forma de sentir o mundo), mas que sem a música e a poesia até mesmo o horizonte do mar se estreita; uma mulher que só vive no movimento, apaixonada por culturas, lugares, mitos, ritos e sonoridades. Uma mulher que precisou estar só e sofrer para ganhar a segurança necessária para dar ainda mais a cara a tapa nesse mundo. 

No meio do ano passado, comecei um ciclo de muitas rupturas, a partir de uma necessidade de solidão que intuía ser necessária, que começou com a separação e parece estar chegando perto do fim apenas agora, oito meses depois. Além da separação, deixei de dar aulas depois de quatro anos como professora universitária de planejamento cultural, porque aquela atividade, da forma como vinha se dando, havia parado de fazer sentido. Resolvi que o melhor a fazer era dar um tempo para ver o que a vida me diria. Nesse caminho de rupturas, eu tive medo, e me apaixonei perdidamente, por um homem intuitivo, é certo, mas que ainda está tateando, um pouco perdido, em busca do seu lugar no mundo... ao menos foi o que eu vi nele. E foi uma paixão triste, em que me enganei profundamente achando que era feliz, porque tentei prolongar um acontecimento, hoje acho que por medo da potência que era estar só, por medo daquela necessidade que senti de solidão. Por algumas experiências dolorosas da vida, que não vem ao caso aqui, eu já sabia que era furada tentar prolongar um acontecimento arrebatador só porque havia sido arrebatador. Mas justamente por ser arrebatador é que a gente quer que ele se prolongue. E eu tentei prolongar o que era para ser apenas um acontecimento mágico, uma noite, um reencontro lindo, poético e calmo. Uma calmaria no meio da tempestade. Aquele foi o momento mais calmo que vivi em todo o meu ano de 2012, tão calmo e bonito que a sensação foi do tempo ter parado. Mas com a vontade de prolongar essa sensação, criei uma confusão. No início era tudo alegre, festivo, até ganhar aquela aura cinza das paixões que não dão certo. E o pior era perceber como isso soava familiar. E foi importante resgatar uma história do passado dentro de mim, que havia ficado lá em 2006, a partir dessa história presente. Importante para eu reagir e realizar o que eu havia me colocado como tarefa no meio de 2012: mergulhar na solidão. E foi nesse mergulho que a paixão triste foi indo embora, deixando no lugar dela apenas a beleza daquele reencontro e daquele marujo à deriva; e foi reaparecendo a mulher que andava por aí feito um móbile no furacão, completamente a mercê dos ventos. Foi reaparecendo a mulher selvagem, porque abri para ela os canais. Retomei minha meditação, meu yoga de dez anos que havia sido abandonado por muitos meses, minha poesia para além de tudo que escrevi para ele (que foi muito) e minha conexão mais profunda comigo mesma, na minha pele, revendo inclusive minha relação com o trabalho de produção, o que culminou no meu recente abandono de uma função de gestão que eu tinha em uma empresa para ficar apenas com a função de conselheira e a função de produtora na Universidade em que trabalho, a UFRJ, que este ano me conectou novamente com a produção em música. E foi só assim que pude voltar a cantar, porque não canto apenas com a voz, nem trabalho a voz apenas para alcançar as notas certas ou interpretar corretamente uma melodia. Eu canto com o corpo inteiro e tudo que o atravessa. Eu canto para que a minha voz e todo o meu corpo fale o universo, comunique a vida! Se há uma questão séria para mim hoje, essa questão é o corpo. Eu canto com o corpo.

O corpo conecta a arte com as questões sobre o feminino e o masculino, porque é no corpo que a cultura nos "molda" e é pelo corpo que a gente escapa à modelagem. Nosso corpo é nosso primeiro território, nosso cartão, nosso ponto de contato com o mundo, nosso ponto de resistência. Nossa mente é corpo e nosso corpo é mente, carrego esta crença da philia de Spinoza. Por isso medito, pratico yoga, canto com todo o corpo. Por isso o sexo é, para mim, uma questão de intuição e instintivo, o que infelizmente o mercado de entretenimento esteriliza. A arte é tátil, concreta, até mesmo a música. Por isso, além do canto, eu resolvi estudar dança contemporânea a partir deste ano, para cantar ainda mais com o corpo e para "dançar" cantando. Por isso a minha poesia revela sensações. Um corpo inteiro e entregue revela o que é grande em nós. O corpo não mente. E o corpo é o primeiro registro de diferença entre um homem e uma mulher, bem como a base da atração ou da repulsão. 

Pensar sobre o corpo da mulher é se debruçar sobre o feminino. A mulher é objeto de desejo de uma forma exploratória na sociedade hoje. Não vejo problema nenhum em nada ou ninguém ser objeto de desejo, mas sim a forma em questão. Portanto, não faço aqui nenhuma observação moralista, porque estou longe de ser moralista. Admiro o nu e também vejo beleza na pornografia, quando entendida como arte e não como mercado, há que se fazer a ressalva. O que me entristece é a violação da mulher selvagem, pelos homens e pelas mulheres, que deturpa o feminino e o corpo feminino, associando-o ao que deve ser ou usado ou domesticado, porque é obscuro, sendo obscuro sinônimo de mal... Estão aí minhas irmãs escorpiana e aquariana que não deixam dúvidas de que o obscuro é um ponto de conexão profunda com o amor universal, que nada tem a ver com um mal. Infelizmente ainda carregamos muito, na nossa cultura, dessa corda que o pior da tradição judaico-cristã deixou para o mundo, e que ganhou roupa nova quando o capitalismo cresceu na lógica da propriedade. O corpo da mulher é, assim, o primeiro a ser moldado, plastificado, alisado, embranquecido, carregado de tarefas a cumprir na casa, na cama e na mesa de trabalho, porque é um corpo, antes de tudo, selvagem, totalmente conectado aos ciclos naturais, gerador da vida. Potência em grau máximo que assusta um mundo pautado pela força do braço, da arma e do dinheiro. Logo depois vem o corpo do homem. Mas até que as mulheres estão se saindo bem no mundo de hoje, muitas negando toda essa carga pesada, mas é preciso afirmar mais. Afirmar um mundo mais intuitivo, uma política mais intuitiva, uma arte mais intuitiva, uma proposta de vida ético-estética do corpo liberto da pressão de ser x ou y. Que ele queira ser x ou y, ou que ele seja naturalmente, não importa. Importa que isso não seja opressor da qualidade libertária e cuidadosa do arquétipo da mulher selvagem. E aqui eu digo: não confunda alhos com bugalhos. O pensamento masculino mais raso pode já estar querendo me comer de quatro para conhecer minha mulher selvagem, já imaginando meu rosto naquelas publicidades deploráveis dos motéis. E eu aqui fico rindo disso. A mulher selvagem ri, junto com os faunos... O riso ignora o que não faz parte do planeta dele. É um escárnio!

E penso que, se as mulheres estão encontrando seus caminhos de afirmação e seus espaços e se conectando cada vez mais com sua natureza selvagem, o mundo para os homens é que anda difícil, pois não sabem como agir com essas mulheres e carregam pesos enormes que a história patriarcal os impõe. Por isso, sempre que encontro um homem mais sensível eu me interesso profundamente por ele. E isso não tem nada a ver com sexo. Algumas vezes tem, muitas vezes não tem, e poucas vezes se transformou em amor. Mas como já falei, sou fascinada pelo universo íntimo e intuitivo dos homens. Não tem nada que me fascine mais entre os seres humanos que uma pessoa em busca, que alguém interessado pelos mistérios da vida, que alguém em conexão consigo mesmo de forma densa e ampla. Quando se trata de um homem, meu interesse cresce, como se ter crescido numa família predominantemente feminina me desse certeza de que para uma mulher será sempre mais fácil estabelecer contato com o mais profundo do mundo e de si mesma. Mas para os homens, isso sempre permaneceu um mistério pra mim. E eles me fascinam. Mas não se trata daquele fascínio do modelo "estou esperando um príncipe". É um fascínio que admira e sente grande curiosidade pelo que há naquele corpo presente que o conecta tão fácil ao divino do universo e de cada um de nós. Um fascínio pelo masculino intuitivo que se revela, por exemplo, na arte. O mesmo que sinto pelo feminino selvagem que busco no meu trabalho com o meu corpo, minha música, minha poesia. Na capa do blog tem uma fotografia que fiz no Louvre, da escultura que mais me encantou quando eu estive lá, uma mulher conscientemente entregue a um fauno. É como a união de Shiva e Shakti, a própria dança que cria o universo no indissociável duplo feminino-masculino selvagens... Arquétipos. 

É por tudo isso que me sinto uma Thaís contemporânea e brasileira longe da conversão. Eu me refiro à Thaís da ópera de Jules Massenet. Thaís era uma cortesã, mulher livre, independente, devota de Vênus. Um monge, Athanael, apaixonado por ela e arrebatado por sua beleza, tenta convertê-la ao cristianismo, usando dos artifícios mais baixos para convencê-la, por ser incapaz de viver esse amor por ela. Ele apela para o fato de que um dia tudo na vida tem fim, inclusive a beleza, ponto fraco de Thaís. Preocupada, ela se põe a meditar e pede à Vênus que conserve sua beleza. E é para o momento da meditação de Thaís que foi feita uma das músicas mais bonitas da tradição musical tonal europeia, uma peça para violino solo que, para mim, foi feita para ser dançada, porque só um corpo feminino dançando talvez consiga dar conta de toda a melancolia e beleza dessa meditação. Ao fim, Thaís se converte. E Athanael só consegue se declarar quando ela já está morrendo... Vivo para que Thaís não se converta. A beleza não acaba, só se transforma. Até que um dia o corpo se vai e pronto. Quando ele tiver ido não estaremos mais, então não há com o que se preocupar. Vivo para que Thaís se mantenha na arte, livre, e possa ser uma mulher inteira, a mulher do primeiro ato, de corpo pleno e seguro, que sabe o que quer e sabe ser grande, e que olha para a cultura e vê a multiplicidade. Vivo para que Athanael não se martirize e não viole a vitalidade dessa mulher nem a aprisione. Vivo para que também seja livre e tenha clareza dos seus desejos. Vivo pelo amor e por uma economia dos afetos que não exclua do jogo uma economia da violência. Mas para isso é preciso que repensemos a cultura e nosso lugar de atuação política, que deve ser também um lugar de atuação ético-estética. Claro que nem precisaria citar a educação. Isso pra mim é tão óbvio que eu estranharia se me dissesse, você que lê, que sequer pensou sobre isso durante todo o texto. Infelizmente a nossa cultura (no sentido de civilização agora) é uma cultura que estimula o rebanho e desconsidera a autonomia, tendo na educação uma aliada. É muito em função dessa prática que vemos crescer homens e mulheres frágeis e fracos. Indo ainda mais longe, uma educação para a arte, para o sensível do mundo e para a intuição em justo equilíbrio com a razão, talvez seja a educação mais justa que possamos imaginar, criar e oferecer, para que a mulher e o homem selvagens possam ter espaço para respirar e atuar na sociedade. E possam transformar a política. Uma educação que valorize a missão da vida em nós, seres humanos. Vivê-la plenamente.

Sei que um dia eu vou voltar pra educação. Eu apenas deixei a sala de aula, mas não deixei de ser professora. De alguma forma atuo assim no dia a dia, e também como terapeuta espontânea, pois as pessoas sempre me procuram para contar suas histórias e desabafar. Mas enquanto eu não descubro a prática artística intuitiva educacional terapêutica que irei realizar por aí, eu vou cantando e poetando, muito embora eu saiba que nunca mais vou parar. E vou cantando e poetando para o divino em cada um de nós, em prece ao universo (a deus e a deusa em suas múltiplas formas) e para revelar nossas singularidades brasileiras, o que não é nenhum purismo nem mesmo patriotismo, mas um revelar riquezas e refinamentos que são autoreferentes, e que não precisam de classificações estrangeiras que lhes digam o que são e só assim são bons. E que canta em qualquer língua, o que não deixa de ser brasileiro. Ou você acha que eu sou tão chegada a um ismo? Gosto mesmo é do momento do instituinte, aquele ato que está no presente. Depois que se transforma em instituído aí me volto a buscar o que é que andam querendo movimentar por aí. Então, se alguém perguntar por mim, diz que eu fui por aí... meditando sobre a eternidade da beleza que existe em cada ser humano, com a qual a arte, aquela que faz sentido no universo cultural de cada homem e cada mulher, se conecta e faz revelar os homens e mulheres de um novo mundo. Lembrei-me de Walter Smetak, para quem um novo mundo requeria novos homens e uma nova música, logo, instrumentos musicais diferentes. Pois eu acrescentaria, se me permitem acrescentar algo a esse alguém que sabia tão bem que era completo, que um novo mundo requer uma nova base educacional que estimule a autonomia e a relação, a conversa, o encontro e as singularidades do feminino e do masculino, logo, um novo trabalho, uma nova família, uma nova música sim. Um novo mundo requer novos homens e mulheres, e essa nova música não é uma negação de toda a música produzida até então, mas a afirmação de que a música é uma só, sem primazia e sem hierarquia. De que a arte é uma só, sem primazia e hierarquia. De que homens e mulheres são apenas diferentes, sem primazia e hierarquia, e que o feminino e o masculino residem tanto nas mulheres quanto nos homens... E como vovó já dizia, a arte é alegria. E Spinoza nos informou do poder da alegria no caminho em direção ao profundo autoconhecimento e conhecimento do mundo, aqui também sem hierarquia entre eles. Beethoven a entendeu muito bem dentro de sua privação, e criou uma peça espetacular para a ode à alegria de Schiller. Alegria é o caminho, e a alegria está na arte, na arte como dia a dia, como forma de estar no mundo de maneira intensa, presente, densa e inteira! Que Thaís não se converta e Athanael largue a batina, porque já mostrou que é hipócrita e não tem a menor vocação pra santo. E que a música venha reconciliar o brasileiro com sua terra, sem que essa terra precise ser o pai castrador freudiano ou o deus que julga. Nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá e uma infinidade de outros pássaros! Deixemos cantá-los todos e voar o Uirapuru, pra que na nossa república federativa cheia de árvores, não precisemos mais dizer tanto adeus. No Brasil, em se plantando tudo dá, por isso dá muito mais do que já deu, dá pra plantar um novo mundo! Assim também é nosso corpo. Assim também é nosso coração. Um mundo de mundos!

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