Postagens

Depois da conversão da noite

Espreguicei no silêncio, A alma repleta de sábado. Respirava fundo, Sentia o cheiro de luz. A madrugada, úmida, Tinha som de marolas E de grilos preguiçosos. Lá, extasiada, fui convertida À igreja do corpo E das memórias perdidas. Acharam-se, elas, numa lua escondida Num céu de nuvens-bálsamo Encoberto pela escuridão. Cresci um tanto de centímetros Nos sonhos. Hoje, eles alcançam O longe das planícies. Atravessam montanhas, Correm junto aos rios, E se metem a querer ser o oceano. Tão largos, sagrados e santos! Vez em quando fingem ser coqueiros E deixam suas folhas serenas balançarem Como se fossem os cabelos de Deus. Alonguei no horizonte. Estava escuro. Eu via tudo... A alma repleta!

Olhos de poeta

Ainda que me conheçam provável Isolada numa sala Sábia ou desinformada Tenho mesmo é olhos de poeta Quando chego a um novo sítio Ou percebo um sorriso que ainda Não havia percebido Tenho olhos de poeta se me percebo A amar os portos e as ilhas tanto quanto O caminho livre e apavorante do mar sem fim E quando exploro montanhas íngremes Em busca de nada mais que o silêncio em mim Assim também os tenho quando desejo uma casa Com a mesma louca intensidade que as estradas E se me deparo com o amor Nascendo na entressafra Quando vejo o que nunca antes tinha visto Minha poeta se torna criança Ou, por ser criança, é que assim vê Tenho olhos de poeta Quando reparo, que de repente, Acende em mim uma luz inesperada A todo instante acontece o improvável Apenas os poetas de alma - nem sempre os de palavra – Veneram sua chegada e o recebem Com flores e beijos na entrada Quem me conhece assim, tão calada Ou falando demais inúteis coisas É porque desconsidera a alma

Planeta Mar

Quando me apresentaram a ti Eu era uma criança E tu já eras uma entidade: Aquela que deveria nomear o planeta, Planeta Mar. Desde então, Eu que nasci nas montanhas, Te ouço chamar meu nome. E tuas infinitas cores, Conchas, ondas, corais, E a vida marítima toda que se agita Sobre ti e dentro, em tua musculatura azul, São poesia que me levam a acreditar. Basta que eu venha contigo falar E luzes acendem, no centro de mim, Aquele estranho sentimento desertoso: Amar! Palavra que te contém, Temor e céu, Oceano meu. Bahia janeiro/2020

Poema para renascer

Foi antes da madrugada da vida Que ficou a minha luminosidade E as borboletas se tornaram sombras Por muito longo e tortuoso tempo Voando ao redor dos segredos Mas no agora o sol reluz Como nasce atrás das montanhas Na plenitude dos dias azuis E se põe no mar aos olhos Estupefatos dos adoradores do verão Só no agora, neste instante presente, No qual o passado nada mais é Que o que ficou rabiscado num livro solene Para ser estudado quando convier, E o futuro, apenas a promessa da luz, É que vive a pulsação mais quente Como guelra de peixe, ovo de lagarto, Asas de pássaro e cio de fêmea. O meu! Neste instante: o presente. Em que me jogo vendada nos braços da vida Com coragem, veemência e sorte Como quem se lança de uma pedra no meio do mar Imitando as aves em seus voos certos, A seguir um corpo pleno da paixão pela vida, Apenas porque segui-lo é encontrar a mim mesma. Renascida! Revisitei a madrugada E com ela conversei longamente. Ao abrir o baú das est

Revelação

Escrevo poesia quando menos espero No aguardo da poesia mesma Ou flertando com aquela Que brota do concreto Todo o tempo ela assopra no meu ouvido: vai, Vanessa, me revela! E as palavras me saem Como vazamento No bueiro da calçada Invadindo a arquitetura E toda a forma muito bem estruturada Suja, bela, inesperada Palavra amorfa que se amolda Ao que transborda Nessa hora eu poderia ser qualquer coisa Chão, parede, janela Qualquer densidade com cheiro de musgo Todas as vigas e varas do teto Para saber como é ser permanente E preparada com cimento para o acaso Porque a poesia me ensinou Que ser humano se prepara mesmo É no despreparo

Diante do concreto

Imagem
Disponíveis antes que a força bruta Desmantelasse os ossos de tempos sofridos Estávamos, eu e tu, diante do concreto O relógio marcava 23 horas Chovia fino, havia silêncio, fazia calor Teus olhos quase claros e gestos singulares Não davam margem para dúvidas E eu permanecia sentada observando, Como se a qualquer momento o mundo Fosse entrar em guerra E seríamos os dois, em duvidosa moral, carregados a um campo de extermínio ou trabalhos forçados Numa Gulag imprevista de um mundo Pós-democrático Perseguidos pela Gestapo das almas perdidas Antes fosse história, ópera, burlesco E, na madrugada, pudéssemos apenas Ouvir com deleite o silêncio e os grilos Você, a fumar seu cigarro olhando pro nada E eu, a escrever meu livro, mais umas páginas Antes fosse apenas filosofia E um muro não separasse as fomes E um oceano não se transformasse em máquina de guerra O que virá não sabemos Sequer sabemos o que queremos Você anda perdido de tão encontrado Amante de tudo nas sac

Nós, os egoístas

Imagem
Ah! Como são tantos a falar Dos geminianos sem coração Que se importam, mas não tanto Esses de alma torta Que mudam de casa Mais que de sapato E começam e começam A deixar os fins para os outros Ou nas palavras rabiscadas em cadernos - Porque não há fim Tanto quanto só há fim - Nós, os obscuros Estudantes dos astros Para quem a vida é uma teia de mistérios Da qual só sabemos existir Pela consciência e nada mais Pois nada nos obriga A ter teorias sobre as coisas Nós, os de sangue insular Que sentem apertar ao peito Os maquinismos Os paquetes Os marinheiros Os que constroem estradas No mar sem fim visto das esplanadas E nos telhados de Lisboa Ou de uma terra estrangeira A minha, mais que a tua E no sentir tudo de todas as maneiras Ao íntimo, o gelo do nosso coração É uma casca fina De quem sente fingindo E finge que sente Gostamos mesmo é do drama Como o meu em derramar lágrimas À tua cômoda Que graça tem a realidade Da gente que segue os protocolos