fragmentos de uma carta para ele
do seu olhar escandaloso
alivio um grito
do alto do meu ego destruído
respondo pela calma
em ondas de respiração profunda
(e é preciso ter postura)
por isso durmo
clamando por nada
por um espaço vazio de sentido
em uma existência apaixonada
acreditando no acaso
e também nas suas falhas
de tempo que se esgota
quando o acontecimento
se instaura
e não me farei de morta!
dança, solitário,
um Dionísio nascente na minha porta
porque não existe força que se atente
para essa ausência desmedida
e eu busco as palavras
por falta de algo mais certeiro agora
pra dizer o que eu não diria
ao menos não escondo
um sorriso errático
que busca pelo teu
encantado
sou estrela em combustão
te conto uma história
e deixo transparecer
que quero a aurora de dias mais leves
faço poesia
como quem faz o bolo pra o café
pra que o teu olhar subterrâneo
me desperte essa fome sem tamanho
no fundo desses olhos castanhos
pra que a arrogante palavra
não possa se instaurar
no meio de quereres tão libertos
você, ao meu lado,
um banco de metrô,
coração batendo e respiração
os olhos cansados
quando pega a minha mão
é roda girando nesse mundo inacabado
nada me escapa
de que teu querer estranho,
que não diz nada,
me ocupe a sede, a fome
e faça o corpo estremecer
um abraço poderia fazer
parar o tempo e a máquina
e a roda da fortuna
pela qual nos chocamos
encontrar o passo certo de girar
no embalo do encontro
e produzir som
uma música desconhecida
que a nada se referencia
que não se encaixa em melodias
pré-concebidas
vai saber...
quem sabe ela é tão desconhecida
que desconcerte esses nossos passos errantes
que vagueiam pela vida curiosos
querendo tudo e tantos lugares
solfejaríamos tanta dissonância
que a música jamais ousaria ser a mesma
porque ser livre
é condição de ser inteiro
e nesse te querer tanto,
acaso repentino,
nessa peça que a vida pregou
e que me acalma o espanto
lembro novamente dos seus olhos
de olhar escandaloso
pelos quais sou carregada
a um universo cujas palavras ressentem
porque são incapazes de dizer
tudo o que o corpo sente
nos teus olhos
a vida abre as portas pra intensidade
e a verdade é que
independente do que pode vir a ser tudo
seremos sempre almas inquietas
cujas formas se amoldam ao mundo
e que desejam todo o universo em combustão
todo o universo
profundo
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de tanto te querer
de tanto desejar a lua
e castelos de areia
a obscena aura do deserto
me levou até você
numa carruagem torta
por um caminho longo
numa caravana nômade
com cheiro de especiaria
no sonho onde beijo sua face
como se beijasse o mundo
e tudo é um mágico
e iluminado segundo
que faz girar a Terra
e é capaz de cessar uma guerra
de tanto desejar o sol
uma aurora avermelhada
me leva sempre até você
onde quer que esteja
esse seu rosto claro
essa maneira certa de ser
uma encantada existência
que é vida potente
como grandes árvores
que não cansam de crescer
e carregam seu sorriso intenso
força errática, denso
de tanto desejar o mar
o azul ultramarino se fez anfitrião
e nos pores de sol diários
quando o róseo se apossa das montanhas
o desejo retorna
não descansa
é aço que derrete no fogo,
porque ama,
e um coração em eterna lembrança
da fome e da aventura
nunca esqueço
que amo nessa vida uma só coisa,
ela mesma
e de tanto te querer
quero tão mais a vida e os paladares...
... que a poesia de repente retornou festeira
fazendo carnaval o tempo todo
e me levando a buscar venturas perigosas
ainda mais sabores
ainda mais delírios
ainda mais seu beijo
e beijos sem fim pelo mundo
carnaval em peso
ainda mais
porque não pode ser de outra maneira
ainda mais
porque só pode ser o corpo
ainda mais porque é sincero
e, por isso, puro
ainda mais porque é pura vontade de existir inteira
de tanto desejar o mundo
no mundo eu dei a volta
e retornei ao ponto inicial de uma memória
muito se passou nas madrugadas desses tantos anos
muito existiu até que fez de ti um novo ponto
e de tanto te desejar um novo ponto,
eu sou alma imoral renascida num deserto branco
o coração vagueia a procurar sentidos tortos
porque sabe, não há sentido possível nessa teia
mas a busca vã não me tira essa alegria
do existente, do imaginado e do presente
ela é carruagem a trazer novas especiarias
caravela para me levar pra Índia
paraquedas para me lançar em queda livre
fundo
ser alma ensandecida
ser um corpo entregue, fecundo
de tanto te querer
hoje eu quero mais
a vida
na poesia de Hilda
na ópera que agora escuto
na montanha de gelo que encontrarei um dia
nessa tessitura
onde eu sou um barco que navega por paixão
e você um nó
de uma rede de afetos que me tomam
eu queria ser agora uma fotografia
para eternizar um sorriso meu que é só seu
porque de tanto te querer, moreno,
hoje eu quero tudo
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o gato de Alice
eu te olhava
ali
sentado
na minha frente
(bebíamos)
eu te dizia
tudo
(chovia)
eu era clareza
eu era saudade
eu queria
você
eu era
só
vontade
mais uma vez
sua mão
pegava na minha
na praça
madrugada
eu quase dormia
no seu ombro
mais uma vez
o tempo
pairava no ar
desejo
nessa noite
de outubro
eu iria
eu teria ido
pra casa
não fosse o que me arrasta
pra você
eu iria
pra onde me levasse
e fui
não!?
eu vou
quando quiser
eu só queria
cada pedaço
seu
um pouco
mais
(e que foram meus)
cada pedaço
da sua fala
da sua existência de gato
que aparece e desaparece,
deixa um sorriso
e Alice fica a perguntar:
e agora, o que será?
mas que importa
a vida
é sempre uma surpresa
eu não te perguntei
você não respondeu
estou
leve
estou
sentindo
ao som de guitarras
e eu seria um rock'n'roll
por isto
farei disto
uma música pra você
pra esse sorriso
que fica
no ar...
até desparecer