Um cisne em voo solo - carta para Stefania
Querida Stefania,
espero que esteja tudo bem por aí. Por aqui teremos que aprender a conviver com a sua partida. Porque a vida segue em todos nós. Em você também, porque acredito que tudo é uma coisa só, vivemos em espirais do tempo e do espaço. Neste momento, estamos apenas em dimensões diferentes da existência. Logo, teremos que aprender a conviver com a sua partida desta dimensão aqui.
Queria te dizer muitas coisas bonitas, mas as palavras são limitadas. Podem ser muito belas, é verdade, e eu vivo buscando beleza através delas. E, junto a elas, explicações e narrativas para o que vivo. Como faço agora nesta carta para ti. Mas acredito que é para além das palavras que a beleza se manifesta mais plenamente. Por exemplo, na natureza, que você tanto amava. E na música, que você dançava. Na noite em que eu soube da sua partida, quando eu já estava sozinha, passei um tempo mergulhada nas palavras. Escrevi para mim, escrevi para o outro, racionalizei para tentar achar sentido. Então, já cansada, recorri a uma meditação para me conectar com a natureza dentro de nós. E, depois, fui à música, como sempre. Ouvi, em sua homenagem, o Réquiem de Mozart.
Ontem foi o dia mais triste. Muito embora você fosse sinônimo de alegria. Mas foi difícil evitar a tristeza. E sei que você vai entender. Quando recebi a notícia, fiquei em choque. Eu tenho uma casca bem dura, mas no fundo sou muito sensível. E fico em choque até o tempo me ajudar a processar as coisas. Talvez por isso você me achava uma referência, porque as nossas almas conversavam. E eu te digo: que honra! Você também foi para mim! Que honra ter trocado tanto contigo nesta vida. Após a notícia, eu desliguei o celular e sentei num banco sem saber por que sentava, mas a minha vontade era sair correndo daquele lugar meio escuro e meio frio em que eu estava e ir para um lugar iluminado como você. E foi o que eu fiz. Eu saí correndo. Desci seis andares de escadas, transtornada. E cheguei a um lugar claro, segurei o braço de uma pessoa querida e pedi um chá. E a vida colocou também, neste mesmo lugar claro, uma outra pessoa para me ajudar, tão sensível quanto você, tão artista quanto você, e que segurou a minha mão e me contou histórias que eu achava nem estar processando, tamanho o estado de choque em que eu estava, que nem um choro descente me vinha aos olhos. Mas que foram as palavras que eu deveria ter ouvido naquele momento para, quem sabe, reforçar a minha fé inabalável (espero que sempre inabalável) na beleza (e nos mistérios) da vida. Era alguém que estava ouvindo falar sobre você pela primeira vez, mas que eu soube que te entenderia. Talvez não estivesse mesmo ali por acaso. Tive sorte! Depois falei com os amigos que estavam por perto, todos artistas também como você, e liguei para a minha mãe e para o meu pai e, então, liguei para uma amiga que passou por dor semelhante há pouco tempo e que tem uma sensibilidade como a nossa, desse jeito de se sentir inadequado no mundo, em busca sempre de criar o mundo à sua maneira. Ela também te entenderia. E fui compreendendo o aparentemente incompreensível. Mas ontem... ontem eu chorei muito. Imagine o que foi falar com o seu irmão sobre isso!? Com a sua mãe... Sua mãe, hoje, quando nos despedimos do seu corpo, me disse para sempre me lembrar de você com amor. E eu disse a ela que não havia outra forma de pensar em você. Afinal, eu te conheci tão menina por conta do amor. E só o que vi em ti nesse tempo todo foi amor transbordando. Seu pai me falou que serei sempre da família e, com aquele jeito brincalhão, disse que para ele, eu e Pedro seremos sempre uma coisa só. E nós conseguimos rir alguns segundos com essa frase no meio da tristeza. Imagino a gente sentada com ele, Pedro e a sua mãe na mureta da Urca, bebendo um suco, e você rindo horrores disso. Eu e Pedro uma coisa só é uma imagem engraçada. Sua tia, seu tio, sua avó, seu avô, a Maria, estavam todos lá para me dizer que eu serei sempre da família e que você me amava muito. Eu também te amava muito. Ainda que estivéssemos nos vendo tão pouco ultimamente. A Analu, que foi comigo, nos conectava também. Assim como o seu irmão. Lembra como você ficou triste quando a gente se separou? Mas, muito inteligente que era, entendeu muito bem que amor não acaba, só mudam as formas. E como você entendia de amor. Era amor em estado bruto, com uma potência tão grande que só seria capaz de implodir. E tenho profundo amor por essa família que também me constitui. Serei sempre da família sim! E sou grata por tê-los no meu coração. É bom ter várias famílias. É bom ter você como irmã, mais uma! Quanto tempo se passou, não é? Já são quase 18 anos. Você cresceu, “virou mulher”, como dizem por aí, atriz, bailarina, cisne! E cá estamos, agora, vendo esse cisne voar. E ainda dizem que cisnes não voam...
Ontem, nesse dia mais triste, eu também recorri à música. E à dança. Minha mente resistiu um pouco. Eu estava no Theatro Municipal e acontecia o ensaio geral do Lago dos Cisnes. Claro, como não pensar em você, bailarina! Resisti, mas resolvi dedicar a você aquela libertação do cisne. Chorei em silêncio e essa foi a minha oração num templo das artes para a artista iluminada que você foi, e que encheu a vida de todos que te conheceram de uma doçura, uma profundidade e uma delicadeza fora do comum. Tchaikovsky também seria capaz de te entender profundamente... Muitos seriam. O mundo está cheio de pessoas com essa sensibilidade rara como a sua. Mas infelizmente a gente, como corpo social, ainda é muito frágil. Ainda cria para o medo, oprime, sufoca as manifestações de afeto e a espontaneidade em prol do simulacro, da imagem, do ego, das personagens falsas das redes sociais e de uma falsa ideia de segurança. Temos muito medo. Coisa que você não tinha. Pessoas comprometidas com a potência da vida, que sentem a vida como um calafrio na pele o tempo todo, têm que cavar seus espaços com muito esforço no meio dessa cegueira social toda. E nós somos muitos. Alguns resistem e criam, outros decidem não continuar. Não é fácil, não é? Mas é muito bom quando a se gente se encontra e se reconhece.
Sei, Stefania, que a vida é cheia de mistérios. Hoje, depois da despedida derradeira, te vejo como um anjo. O cisne que foi dançar em outra dimensão e que, como anjo que é, vai continuar operando milagres na vida de todos nós. Quem vai saber. Quem é que sabe dos mistérios. Se vivemos em espirais, perdas e ganhos fazem parte do mesmo processo, do mesmo movimento. Tudo é uma coisa só. Movimentos do mesmo universo. Quem sabe o que se está por ganhar diante das perdas, mesmo as mais dolorosas? A vida é uma fita de impermanência, de incertezas, de fins e começos. É assim mesmo. Temos que desenvolver serenidade para aceitar o que não somos capazes de entender. E aceitar inclusive quando algo já acabou, já “deu o que tinha que dar”. Não deixa de ser também uma generosidade. Aceitar o fim é aceitar também a potência da vida. Ela só é potente porque existe esse movimento do ir e vir. Não existe vida sem finais. Ela é tão somente movimento e dele depende! Só existe uma coisa que é permanente e que conecta esse movimento do ir e vir. É o que acredito, pelo menos. Essa força é o amor. E ela está tanto nos começos quanto nos finais, diferente do que nosso medo quer nos fazer acreditar. Você sabia disso. E partiu nos deixando um legado: é preciso apostar no amor. O resto é consequência! Descanse em paz. Voe hoje como voava ainda tão nova (olha você aí embaixo, ainda pequenina). Voe, grande e belo cisne! Cisnes sabem sim voar! E daqui há um tempo, veremos o que o seu voo terá nos trazido!
Com amor,
Vanessa
10/06/2016