Bio e micropolíticas
Nesses últimos dias discuti com meus alunos a idéia de biopolítica como a lógica do estado, de que forma aquilo que Guattari chama de produção de subjetividade capitalística atualiza a biopolítica hoje, e como micropolíticas podem ser práticas efetivas de nos colocarmos como criadores e protagonistas, invertendo a lógica de que o macro (Estado, leis, corporações etc) é a voz que define as necessidades e, assim, ações de intervenção, sejam elas no âmbito social, educacional, da saúde, dos julgamentos etc. Cada turma reagiu de uma forma e enriqueceu a discussão. Porém nenhuma passou sem reagir, o que foi ótimo, pois a aula fica mais intensa e interessante para os dois lados. Muitos questionamentos surgiram na minha cabeça, inclusive de um aluno que questionou até que ponto o meu vegetarianismo não foi capturado por essa subjetividade dominante e se coloca reproduzindo velhas hierarquias e vícios que estão enraizados na nossa sociedade. Algo a se pensar. Ele tem razão ao afirmar que essa captura é possível; a própria categoria “vegetariano” é definida no âmbito das instituições, em relação com elas, inserindo-se como mais um nicho de mercado e muitas vezes não como uma postura ético-estética diante do mundo. E é assim com todas as categorias que são definidas por essa biopolítica para enquadrar os que se encontram fora do ideal de normalidade com o qual ela opera: feministas, gays, negros, criminosos, loucos etc etc etc. Uma reflexão boa seria pensarmos até que ponto os movimentos de afirmação ou defesa dessas categorias não estão reproduzindo lógicas hierárquicas, exclusões e segregações? De que forma operarmos com essas categorias para afirmar outros modos de vida possíveis que não o da subjetividade dominante sem nos deixar levar pela estigmatização, sem nos fecharmos cada vez mais nos guetos identitários que servem muito bem como massa de manobra, como rebanhos reprodutores de certos discursos? A reflexão que tenho feito tb com eles é: não há como trabalharmos com cultura sem considerar quais as implicações políticas (no sentido amplo de política) que a idéia de que cultura que trazemos com a gente tem. Sem considerarmos todos os discursos facistas (tanto de estados facistas quanto os pequenos facismos que vivenciamos muitas vezes no cotidiano, com a família, o amigo, as relações amorosas) que se utilizam da idéia de identidade. Onde estão as brechas para que os diferentes modos de vida possam emergir sem que o estado ou as leis delimitem seu campo de atuação? O que é essa idéia de representação que sustenta o Estado e as instituições? O que é o direito, a polícia, a mídia regulando a nossa vida? De que forma abrir espaços para que a discussão sobre o funcionamento e até sobre a necessidade ou não dessas instituições apareçam? Como e onde abrir espaços para a discussão da auto-gestão, do protagonismo, da possibilidade de uma vida mais criativa e reflexiva, especialmente nos países pobres, onde mal se tem o que comer? Tem um exemplo bem legal que gosto de falar que é o de um grupo de permacultura urbana que trabalha em Santa Teresa que recuperou com a comunidade uma área degradada de uma favela e a transformou em uma horta ecológica comunitária, resolvendo ao mesmo tempo problemas como fome, doenças, degradação ambiental, falta de perspectiva e geração de renda. Tudo isso sem passar pela estrutura Estado-Mercado de Trabalho, não buscando promover uma inclusão, mas criando-se um espaço de atuação. Outras questões que permanecem em mim: como transcender os dogmatismos e pré-conceitos que dificultam nossa capacidade crítica e tb de entendimento do outro? Quais as lutas possíveis para além da luta de classe marxista? As lutas são muitas, a de classe é apenas uma delas. Existem as lutas internas, de subjetividades, com os mercados, com a fome, com os desejos do corpo, com as diferenças... como diz Guattari, os proletários hoje são os marginalizados, excluídos, imigrantes. O contexto é complexo, ao mesmo tempo em que se diluem fronteiras outras nascem. Então, voltando a questão lá de cima, não sou vegetariana, produtora, professora, cantora, aspirante a isso ou aquilo. Sou um corpo que deseja, que é atravessado por discursos o tempo todo, que está buscando a sua forma de atuação ético-estética no mundo que, aí sim, passa pelo vegetarianismo, pela arte, pela reflexão da minha atuação como professora e produtora cultural, pelo questionamento do impacto do meu consumo, pelo yoga, pela minha relação com o meio ambiente e o outro. Sou tudo isso e mais aquilo que não consigo listar, pq o tempo todo estamos sendo atravessados por tudo. Assim, não sou alguém que pode ser engavetado e etiquetado. Não sou cidadã, consumidora, eleitora, algo passível de se tornar estatística. Sou uma pessoa, com tudo aquilo que é próprio de ser gente. E vc?
Alguns trechos de alguns pensadores-interventores...
Negri (em Exílio)
“A biopolítica é essa perspectiva dentro da qual os aspectos político-administrativos se juntam às dimensões democráticas, para que o governo das cidades e das nações possa ser apreendido de maneira unitária, reunindo ao mesmo tempo os desenvolvimentos naturais da vida e de sua reprodução, e as estruturas administrativas que a disciplinam (a educação, a assistência, a saúde, os transportes etc). […] uma vez admitida essa definição, é preciso, contudo, ir um pouco mais longe e perguntar-se o que significa biopolítica quando se entra no pós-moderno, ou seja, nessa fase do desenvolvimento capitalista em que triunfa a subordinação real da sociedade como um todo ao capital. […] o biopolítico mudou de cara: torna-se biopolítico produtivo. Isso significa que a relação entre os conjuntos demográficos ativos (a educação, a assistência, a saúde, os transportes etc) e as estruturas administrativas que os percorrem é a expressão direta de uma potência produtiva. […] o conjunto das forças produtivas, dos indivíduos e dos grupos se torna produtivo à medida que os sujeitos sociais se vão reapropriando do conjunto. Nesse âmbito, a produção social é completamente articulada através da produção de subjetividade”.
Guattari (em As três ecologias)
“Convém deixar que se desenvolvam as culturas particulares inventando-se, ao mesmo tempo, outros contatos de cidadania. Convém fazer com que a singularidade, a exceção, a raridade funcionem junto com uma ordem estatal o menos pesada possível. (...) Tal problemática, no fim das contas, é a da produção de existência humana em novos contextos históricos”.
Foucault (Em Defesa da Sociedade)
“A biopolítica lida com a população e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder. (...) Não se trata por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e assegurar-lhes não uma disciplina, mas uma regulamentação”.