Produção cultural

Alunos lá da Faculdade (pra quem não sabe sou professora substituta de planejamento cultural no curso de produção cultural da UFF) pediram para eu escrever um texto para os calouros e para o manual que eles fizeram sobre o curso. Bem legal isso. Estão voltando as boas iniciativas alunescas lá na procult. Fizemos um debate de ex-alunos essa semana e foi bem legal relembrar um monte de coisas. Reproduzo o texto abaixo. Não sei o que acho dele. As vezes gosto, as vezes não.

Acredito que o ofício de produtor cultural é um dos mais abrangentes, porém um dos mais fascinantes e, ao mesmo tempo, mais perigosos que existem, porque podemos ser criadores e mediadores de desejos e políticas.
Assim, cabe a nós, que nos intitulamos produtores, trilhar os caminhos onde queremos atuar. Aqui vale uma reflexão: até que ponto é um produtor cultural aquele que colabora, hoje, na manutenção de instituições e padrões culturais da megamáquina de produção de subjetividade capitalística, para usar uma expressão muito bem vinda de Guattari. Aliás, esse mesmo pensador chegou a afirmar que cultura seria um conceito reacionário, uma vez que é o motor dessa produção de subjetividade.
Falando assim parece até que não temos alternativas. Trabalhamos com cultura ou, pelo menos, com produções simbólicas, semióticas. E aí? Nos serve ainda Guattari e sua idéia das micropolíticas e revoluções moleculares. Sejamos, então, produtores e mediadores de singularidades em contextos micropolíticos que existam baseados não em regras ou leis das máquinas estatais, empresariais ou qualquer outra megamáquina reguladora, mas que se baseiem em desejos e trabalhem com as multiplicidades e as singularidades (e não dicotomias como as de classe ou de bom e mau); que sejam máquinas de singularização, ou contra-máquinas.
Para beber mais desses pensadores autônomos e errantes, que atuemos nas brechas deleuzianas que se abrem no rizoma da existência, para alterar sempre o fluxo do rizoma, ou que sejamos os mediadores daqueles saberes sujeitados (como nos diz Foucault) em séculos de uma história de opressão e supressão desses saberes, tradicionais ou, simplesmente, não enquadráveis.
Quem sabe assim possamos reinventar a política, a empresa e, por quê não, nossa relação com o mundo e com o outro, para que ela seja mais sustentável e rica em cores, cheiros, cantos, danças e do sentimento de amor à vida.
Ser produtor cultural não é ser o técnico que entende tudo de Lei Rouanet. É, antes de tudo, assumir uma postura frente ao mundo, entendendo que nada está dado e sim, que a realidade é um caldeirão de possibilidades de modos de existir a ser talhada, moldada e desmoldada. Eu poderia aqui enumerar as várias qualidades técnicas que um produtor deve ter, assim como sua postura no trabalho e as possíveis áreas em que ele pode atuar, mas não iria acrescentar em nada, pois há quem faça isso melhor que eu. Prefiro uma reflexão, algo tão pormenorizado hoje em dia.
Acredito, desta forma, que a faculdade pode até instigar essa sensibilidade no pretendente a produtor, mas se não estivermos abertos a ela seremos apenas um técnico. Graduado ou não, o produtor cultural que preza seu ofício é aquele que sente o mundo e quer realizar, criar, fazer a diferença. Entrei na faculdade com esse pensamento, deixei de acreditar nele por um tempo. Mas só mesmo a experiência nos traz certezas. O caminho que trilho hoje me devolveu a certeza nele. Certeza essa que pode um dia ir por água abaixo, pois a vida não é nada precisa. Mas vamos viver o presente trabalhando para que sejamos os poetas do amanhã: arautos, músicos, cantores do amanhã[1]. Que possamos preparar uma canção que faça acordar os homens[2]. E deixar que os desejos, os símbolos, as semióticas com os quais trabalhamos construam os caminhos, as pontes e nossa sustentabilidade como produtores. Esse é o horizonte pra onde navega meu barco...




[1] Walt Whitman. Poetas do amanhã. Em Folhas de relva.
[2] Carlos Drummond de Andrade. Canção amiga. Em Antologia poética.

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