Do desejo e do desapego

Pequenos momentos podem ser grandes momentos, quando capazes de ampliar a vida, de torná-la mais bonita e mais leve. E talvez sejam os pequenos momentos os que mais deem sentido à vida. Um abraço, um cafuné, um bom café, uma boa noite de sexo, encontros, reencontros, olhares, fazer uma comida pra quem se gosta, oferecer e receber ouvido, atenção, colo, flores, ter aquela conversa, beber um vinho, conseguir fechar um trabalho, iniciar um, pegar um avião, saltar do avião, chegar num lugar desconhecido, chegar num lugar que se ama. É no dia a dia que as coisas se consolidam, que a intuição tem espaço, que se constrói e se destrói. É no cotidiano, na necessidade de viver o que a vida nos coloca como nosso, que temos a chance de aplicar conhecimentos, teorias, juntar práticas, organizar, reorganizar, desorganizar. É no dia a dia que dimensões fundamentais da vida ganham espaço, como o cuidado, a atenção, a relação entre o que somos e o que é o outro e o mundo. Os grandes acontecimentos são importantes, como as celebrações ou os ritos de passagens, mas é no dia a dia que os processamos, criamos sentido para eles e, de fato, fazemos a vida acontecer. Infelizmente, quando há um desequilíbrio das forças, a gente perde muito como ser humano. Ao menos, acredito nisso. Observo que vivemos numa sociedade que privilegia o grande acontecimento, a imagem, e suprime um pouco a dimensão do cotidiano. Há pouco tempo, dei uma entrevista sobre indústria da música para o Jornal Valor e falei sobre isso, quando me perguntaram se a valorização da imagem do músico em detrimento da música tinha relação com a cultura. Claro que tem, desde que entendamos a cultura como a expressão de um tempo. Dei a seguinte resposta: 

"Isto é a nossa cultura hegemônica hoje, entendendo cultura como a expressão e produção de um povo, país, grupo ou de um tempo. Neste sentido, tem a ver com cultura sim. Mas quando isso acontece, de fato a arte fica em segundo lugar. Valoriza-se muito mais a casca que o conteúdo. A cantora até estuda pra não ficar mal na fita, mas ela está mais preocupada com a escova no cabelo do que com a voz... A imagem tem um peso enorme hoje em dia, de uma maneira descolada da ética. A estética é uma dimensão fundamental do humano, mas descolada da ética é somente aparência. Acho triste isso como cultura de um tempo. E está presente em tudo. Quantos casamentos infelizes existem por aí, mas que a festa foi incrível, o papel foi assinado, e todos saíram satisfeitos por cumprirem seu dever social? E vamos vivendo histórias de mentira... Assim como amor é uma coisa que se vive no dia a dia, muito mais do que na mise en scene, cultura e arte também. É uma ralação diária pra se fazer uma coisa consistente, para não descolar a estética da ética..."

Nessa imbricação da estética com a ética, para mim, reside uma das questões fundamentais da vida. Mas isso traz uma fatalidade. Não no sentido daquilo que é ruim, mas no sentido do que é inevitável. Ou nos confrontamos com isso ou viveremos pela metade. Em algum momento, a vida vai se encarregar de nos mostrar que ela não é o que a gente desejaria que fosse. E leva-se tempo para aceitar isso. No entanto, quando se aceita, a vida parece se tornar muito mais interessante, porque infinitamente surpreendente. Pois nos deparamos também com a limitação do nosso desejo, e com a limitação do nosso entendimento da vida, sempre pautado pelo que queremos, e isso exclui uma série de possibilidades. A questão é que lidar com isso não é fácil, e parece bem mais fácil fechar os olhos e fingir que está tudo resolvido. Nada está resolvido. A vida é processo. Claro que algumas coisas precisam começar e terminar, ciclos se abrem e devem ser fechados no tempo de fechar. Mas em termos de sentido, da pergunta “quem sou eu, o que faço aqui e o que quero, e o que é a vida”, o processo é permanente. Aqui, entra outro componente fundamental: a relação com o desejo e o apego. 

Primeiro, começa pela confusão com o conceito de desejo, por isso esse é também um componente fundamental. É preciso que entendamos o peso que certas práticas têm na cultura para relativizarmos as coisas e ganharmos leveza. A psicanálise consolidou muito bem um determinado conceito de desejo na cultura ocidental, de tal forma que ele se tornou a verdade sobre esse conceito. Desejo passou a ser aquilo que queremos e do qual nos tornamos escravos, conceito que, depois de algumas décadas de psicanálise, Deleuze e Guattari vieram combater, afirmando que desejo é uma força que, em linhas bem gerais, move o ser humano e qualquer coisa viva. Não vou aqui filosofar sobre o desejo, porque eu precisaria retomar estudos e discussões que estão enferrujadas na minha vida, para relembrar algumas coisas e ganhar mais consistência, mas quero chamar atenção para uma coisa: o desapego como forma de tornar o desejo algo mais leve. Sendo desejo algo que se quer, tendo esse peso que a psicanálise colocou nele, deduzo que uma questão importantíssima para se viver bem é como desejar, se movimentar, em suma, viver, sem depender daquilo que se deseja ou, até mesmo, do desejo que te move. Não sei muito bem a que caminho eu vou chegar com essa especulação, porque isso é mesmo uma especulação. Mas entendi o que para mim significa o desapego, depois de tantos anos intrigada com isso, fazendo meditação, pesquisando o budismo, entre outras práticas. 

Fala-se aos quatro ventos e nas redes sociais da vida que o desapego é fundamental. Sempre que vejo isso me pergunto se as pessoas pensam sobre aquilo que elas falam, e se dispõe algum tempo de suas vidas a tentar entender o que está circulando de fala por aí. Porque o que mais tenho visto são falas apressadas. Não que as coisas não possam acontecer rápido. Acontecem, e eu que o diga. Mas vejo uma necessidade de fala desesperada hoje, uma pressa em querer opinar. Lança-se, assim, a “opinião” de qualquer maneira, e muitas vezes ela é tão somente um desabafo ou a expressão de alguma vontade, ou uma carência, carregada da história da pessoa, suas conquistas e frustrações, lançada sem o menor cuidado nas redes e nos espaços coletivos. A galera está mesmo com pressa hoje em dia. Talvez porque tanta coisa esteja entalada na garganta, claro. Só acho que se precisa ter cuidado, pelo outro e por si. Fica-se vulnerável diante da fala apressada jogada sem parcimônia nestes espaços coletivos, e fazemos, a partir dela, muitos julgamentos pré-conceituosos. Muitas vezes, a fala apressada é também uma defesa e, em alguns casos, uma vontade de aparecer, de mostrar que se tem opinião, de provar alguma coisa qualquer pra sei lá quem. Um medo de ser só mais um, uma fragilidade... Mas cuidado também não é ficar quieto. Um grande amigo vem colocando, nestes espaços coletivos, uma questão importante e que tem me feito pensar muito: menos medo e mais cuidado. Tomei isso pra mim como um mantra, pelo menos por um tempo. Temos muito medo de viver; medo do outro, medo de sair do nosso lugar de conforto, medo de não ter o que dizer, medo de não saber. E o medo, embora um recurso de sobrevivência, quando alimentado, mesmo que de forma subconsciente, paralisa a inteligência plena. E nos jogamos diante do mundo de forma reativa, buscando sempre “culpar” algo ou alguém pelas nossas incapacidades, ou de maneira individualista diante de questões que merecem foco no coletivo, ou de maneira rasa quando precisamos mergulhar em nós mesmos, com medo, talvez, do que vamos encontrar. Mas, enfim, tudo isso pra dizer que o desapego me parece não aquele desapego utópico da supressão do desejo, mas a não dependência daquilo que se deseja. Um cuidado com si mesmo e um cuidado com o outro. Desejar, no sentido de querer, causa uma grande ansiedade, e a ansiedade, quando exagerada, torna os processos confusos e altamente individualistas, e daí surge essa exacerbação do ego que vemos hoje em dia, expressa, inclusive, nas falas apressadas. Fato é que a ansiedade também move, mas como nada na vida é, me deve ser, simplificado, embora simples (e o simples é complexo...), ela também tira a nossa capacidade de relaxar e de observar o outro, para que a troca se torne efetivamente uma troca. 

Sou uma pessoa muito ansiosa, desejo demais. E esse desejar demais me move, o que é ótimo, porque sempre realizo coisas incríveis. Mas quando a ansiedade chega ao ponto de me exaurir, e hoje eu já consigo identificar minimamente esse ponto, eu sei que me entregar a ela é uma cilada das mais terríveis. Por isso, respiro, medito e lanço para o universo. Desapego. Não que eu deixe de me movimentar, mas eu deixo de depender dos resultados do movimento para me sentir em paz. Você poderá se perguntar se eu realmente consigo isso. Bem, muito mais que ontem, e muito menos que amanhã. É um constante aprendizado, puro fluxo e movimento. Nesse sentido, o desapego tem relação direta com o cuidado. É um cuidado de si e um cuidado com o mundo e o outro, na busca de encontrar o ponto onde você não se anula e não sufoca o outro, onde você age com o coração na hora que tem que agir, e onde você recua na hora que tem que recuar. Estar atento é um cuidado. Atento a si, atento ao outro, atento ao que se passa ao seu redor. Isso é cuidar. E o cuidado é fundamental para ampliarmos nossa visão de mundo, da vida e para acalmarmos o coração. Nunca fui uma pessoa muito cuidadosa, mas é impressionante como a gente muda nessa vida. Hoje, o cuidado se tornou uma questão fundamental pra mim, talvez porque, cada vez mais, o desapego também seja.

Acredito que é preciso deixar-se levar pelo desejo e se movimentar, tanto quanto é preciso saber a hora em que somos movimentados. É preciso confiar. Isso é desapego. Isso é cuidado. A gente confia muito pouco na vida e até na nossa própria capacidade quando somos tomados pela ansiedade de querermos que a vida seja de tal ou tal jeito. E confundimos muito essa entrega com ficar parado, simplesmente aceitando as coisas como elas são. Falo justamente do contrário. Assim como Deleuze e Guattari, acredito que o desejo move o mundo, e é o que me move, e é o que deve mover. Mas também, é o apego ao desejo que produz as coisas mais bizarras, como a paixão pelo poder, por exemplo. O poder é um desejo de poder sobre o outro. Apaixonar-se pelo poder é uma cilada e tanto do ego. Eu posso estar fazendo uma confusão com esse conceito de desejo aqui, mas como eu falei, são especulações ainda. E escrevendo eu vou arrumando as pecinhas na cabeça. Assim como, às vezes, o que mais preciso é abandonar as palavras para entender algumas coisas. Tenho tentado equilibrar essas duas formas de conhecimento e construção da realidade...

Mas sei que nesse momento a questão do desapego se tornou uma grande questão. E pensando nessa sociedade apegada, e tão apegada a imagem, que dá tanto mais peso ao espetáculo que ao que se vive e se sente de verdade, não tenho como não pensar em mim, sendo que vivo neste tempo. E vice-versa. Pensando em mim, também penso no mundo.

Ontem, voltei da minha aula de canto muito pensativa. Já era tarde da noite, fazia muito frio, e caía uma garoa. Eu caminhava me sentindo leve, e pensava na vida e nos últimos acontecimentos. Joguei para o universo os meus anseios. Venho num processo de fazer isso já há algum tempo; o processo de me movimentar no cenário entre o meu desejo e o que preciso fazer, e quando confiar e entregar para o mundo. Não sei precisar há quanto tempo, pois sei que é uma questão de anos. Mas de forma mais enfática, como uma questão que realmente faz sentido, faz pouco mais de um ano. Então, eu andava por aquelas ruas arborizadas da Tijuca, cheias de casinhas legais, perto da montanha, sentindo a chuva fina sobre mim, e me veio a memória, totalmente afetiva, de Petrópolis, cidade onde nasci, vivi minha infância e passei boa parte da vida visitando por conta dos meus avós e tios. Acho que aprendi a gostar da Tijuca, especialmente da área onde moro, perto da montanha, por conta dessa sensação que me traz aquele cantinho do bairro. Quando começa a esfriar no Rio, parece que lá é o primeiro lugar a sentir o efeito do frio (no caso do calor vale o mesmo). Vai baixando uma neblina montanha abaixo, e o vento logo fica gelado. Gosto disso. Ou foi o que escolhi para aprender a gostar da Tijuca e fazer do bairro um lar, depois de 12 anos morando colada ao mar, coisa da qual sinto muita falta. Mas nada que um deslocamento rápido não resolva! Pois bem, eu ia passando por aquelas ruas bonitas, cheias de casas, prédios baixos e árvores, ouvindo músicas que ampliam a vida, repleta de uma boa nostalgia, e me sentia certa; muito certa, de que lancei para o universo tudo o que vinha me amarrando em insônia, angústia, e outras coisas que me destroem. Se eu consigo? Como falei, mais que ontem, menos que amanhã. Mas a sensação é de conquista.

O fim de semana foi emocionalmente intenso, me exigiu, e comecei a segunda-feira já com sensação de sexta. Precisei me desligar na segunda, como às vezes eu preciso para recarregar as baterias, e deixar o mundo desabar sem a minha intervenção. Sei que isso, quando se tem compromissos, é algo complicado. Mas como muito do meu tempo está hoje nas minhas mãos, outra conquista fundamental, eu me dei esse luxo, pois eu sabia que poderia resolver tudo a partir de terça. Sumi do trabalho, pois o cansaço, físico e emocional – uma mistura de ressaca, falta de sono e excesso de gente e suas inúmeras questões –, me impedia qualquer discernimento, e ainda havia uma raiva de ter que fazer uma coisa que eu não estou nem um pouco a fim de fazer: uma produção que não fala ao meu desejo e que chegou de forma atropelada, enquanto tantas outras falam e para as quais também preciso dar atenção. Dormi a tarde inteira, com a pressão baixa e, quando acordei, alguma coisa me disse que eu devia me mandar pra São Paulo no fim de semana. Não sei por que razões lógicas, mas eu atendi a esse chamado interno, até porque faz mais de um ano que não vou lá. Eu sequer pensei se eu poderia ir ou se teria dinheiro. Simplesmente acordei, me veio a ideia e eu comprei uma passagem. Vai entender... E nem consegui resolver tudo pra ficar tranquila por lá. Não sei até agora onde vou dormir no sábado, por exemplo, nem o que vou fazer no fim de semana. As únicas coisas que sei são o dia que chego, o dia que volto, e que tenho onde ficar e o que fazer na sexta. De resto, eu ainda vou descobrir. Mas é isso, estou confiando que tudo vai dar certo. Porque sempre dá. Uma amiga disse que sou louca, brincando, claro, porque ela me conhece há 13 anos. Mas pra mim, louco (no sentido, aqui, daquele sem noção do que faz) é quem vai vivendo a vida na mesmice, sem risco e sem movimentação. A vida é curta demais pra se ficar com a bunda no sofá, pra se fazer o que não se quer, para se estar com quem nada tem a ver com você, pra não dormir o tempo que se quer dormir (créditos desse último pra um amigo com quem conversei hoje no almoço). É preciso jogar para o universo e confiar. E jogar para o universo é se movimentar, porque nada cai do céu. Acredito que mesmo que a gente não saiba pra onde ir, devemos escolher um ponto e ir. A vida sempre se encarrega de nos fazer chegar a algum lugar interessante quando a gente se põe em movimento. E nesse caminhar, a gente vai ajustando, avaliando se é isso mesmo e, às vezes, podemos nos desviar completamente do caminho, o que pode ser ótimo, pois é sinal de que alguma coisa falou alto ao nosso desejo, ou pode ser ruim, mas isso vem pra nos fazer crescer. É como aquele verso: não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. Portanto, é preciso ir. Aquela metáfora que compara a vida a andar de bicicleta é linda e, para mim, super verdadeira: para se ter equilíbrio é preciso estar em movimento. Então, uma coisa se tornou certa na minha cabeça: movimente-se, mas confie. O apego é um bichinho sedutor, mas completamente traiçoeiro. Por isso, joga pro mundo e vai tranquilo, desapegado! E coisas maravilhosas serão possíveis. Observemos no nosso dia a dia essas questões. É nele que a vida dá pistas de que é incrível!

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