anunciação


anunciou-se um corpo
o meu próprio
relembrou seu ópio

pedi-me atenção

lançada estou
mais uma vez
no poço sem fundo da alma

essa inexistência exata
que me cala a exata existência

como há um,
dois anos talvez?
quem sabe alguns meses
quem sabe...

quem sabe o que trazemos conosco
e que nos torna nós mesmos?

mas que melhor momento para uma virada!
estes, em que não sabemos nada...

quando o que nos é revelado,
apenas pela intuição
pode ser conquistado

se sei do líquido raso que é meu sangue
tão infame e próprio à densidade alheia
é porque sei da imensa profundidade da pele

e sinto o rombo do corpo sutil
maltratado
o tombo de dentro de mim mesma
deslocada
lá onde só a poesia
é a composição certa de palavras
e irmã dessa poética palavra
a música
é também ela
capaz de reconhecer
a suada alma despedaçada
e com tanto ainda por viver

densidade em ser
por um lado, brisa
por outro, ansiedade

velho e conhecido exercício
o de equilibrá-las

pois nasci numa estação de transição
não sou daquelas pessoas
que possuem as certezas
do inverno ou do verão
sou daquela gente
em mudança permanente
alma-budista
circense

filha do outono
e amiga das almas da primavera!
porque o oposto
é o outro mais próximo de si

muda
folha que cai
ipê que floresce
quase invernal, é certo
mas aquela que fecha
as portas do outono
como se quisesse guardar
a preciosidade do incerto

porque nada é mais exato que a fortuna
que anuncia aquele descampado musical

(ó fortuna! velut luna statu variabilis)

sabe o meu corpo
dessa lógica sutil e encantada
que governa o mundo

mas agora
meu saber está
colocado à prova da existência

uma vez com as ferramentas
a diferença entre aquele que lamenta
e aquele que agradece
é linha tênue

é preciso usá-las
para se viver atento

para sermos observadores de nós mesmos

é preciso reeducar o olhar
e saber ler a si mesmo

e encarar
a mania de afirmar
que se soube tão bem ler o outro

pois como entender o outro
se mal sabemos de nosso próprio corpo?
se todo o vazio do mundo
pode a qualquer momento nos lançar
num campo morto?

nos construímos em espelhamentos sóbrios
como se a cultura desse conta
de dizer quem somos
e decodificar nosso espaço,
nosso sexo, nosso ócio

apenas sei que hoje
tenho as ferramentas
e posso ser marceneira
da minha própria casa

aquela interna

porque tenho com elas
os sonhos
os desejos
a música
as palavras

tenho a mim mesma

e antes de mais nada
é nosso corpo
o nosso primeiro território

pois que assim seja
diariamente
para que ao perder-me
esteja meu corpo presente
e consciente que perdeu-se

e caso ele se perca completamente,
tão completamente que esqueça,
que as ferramentas antes trabalhadas
venham, pelo insight da existência,
relembrá-lo da sua divindade

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