Numa noite de chuva
minha sapatilha vermelha
encharcada da chuva
só desejava vagar
tudo parecia incerto
mas foi certo como poema feito pra chorar
ela buscou os amigos errantes
e foi na sua errância sentar só
pediu uma pizza, uma cerveja e uma alegria
não aceitou a burocracia cinza
da fila e do transporte
daquela gente toda com cara de apatia
tão apegadas às suas casas
que esquecem que existe poesia
apegadas, todas elas, a uma sobrevida
que atravessam o mar todos os dias
e, moribundas, só esperam a hora de chegar na terra
respirou fundo
aquela sapatilha vermelha que foi vagar
mandou mensagens para os queridos e recebeu uma resposta
a resposta certa de uma alma errante
cumprindo deveres que a errância não entende
mas precisa aceitar
mas, nossa, que alma alegre!
eu devia era ter te sequestrado
e essa chuva então...
com o esmalte vermelho paixão
sentei na mesa coberta por um toldo verde
e lembrei também do amigo Juba, meu amor de vento,
das noites que ali passamos em nossas gastronômicas orgias de sabor
pra ti também mandei uma mensagem
e sei que um dia ela será vista e respondida
e você vai ser um grande mensageiro
com as mãos repletas de amor e busca
(posso te encontrar lá na Tijuca dia desses
naquela casa mística do reiki)
pois lá, na nossa mesa, bebi uma Budweiser 600ml
na mesa, abaixo do toldo
aquela alegria toda de poder vivenciar o Rio
parecendo minha terrinha lá na serra
uma chuvinha, uma neblina, um ar noir
só não pedi vinho pra não ficar romântica demais
e a cerveja pareceu cair melhor
e como ela, a poesia,
não haveria de vir?
chovia
eu queria botar pingos nos is
mas descobri que o alfabeto é mais extenso
e esqueci essa história de querer manter a lógica
eu senti, sentei,
chamei o garçom e fiz o meu pedido
chovia
no toldo, o barulhinho bom da vida
a luz, ofuscada,
criava no poste aquela atmosfera de mistério
uma ópera tocava no som
ninguém ao redor
todos fugiam da chuva dentro do salão
e lá estava eu,
unhas vermelhas, vestido de renda preta,
rodado, cintura definida, curto pra mostrar a tatuagem
fazendo pose de "oi, vida, estou aqui", mangas compridas,
perfume de limão e coração tranquilo
como companhia, aquelas edificações antigas
aquela música maravilhosamente invasiva
aquela beleza toda das portas já fechando
e dos cachorros a procura de abrigo
até um professor querido veio fazer parte da memória
e ao fim
eu era uma pluma jazzística
eu era botão de rosa abrindo
eu era a moça que conversa com a garota de programa
eu era uma ajudante de mendigo
eu era a terapeuta do garçom
eu era a estranheza dos casais que passavam
e tinham cara de enterro
eu era Virginia Woolf
e contemplava as horas densas da noite molhada
eu era Gullar na noite veloz da minha cidade apaixonada
e um Maiakóvski ardente querendo desorganizar
(e olha, poeta, que bem falei com teu xará hoje
e, pra variar, divagamos sobre a vida)
mas quando vinha o cheiro de mar...
sempre a recorrência portuguesa...
e ela, a chuva, insistia
e quando eu voltava a ficar só
um sorriso bobo se esboçava
eu sei, eu sou privilegiada
eu tenho um guarda chuva vermelho só pra combinar com as unhas
porque gosto mesmo é de me molhar
e sei,
e compartilho contigo,
doce andarilho,
que esse cenário,
essa poesia,
dariam, sem dúvida,
uma bela fotografia
- e ela seria uma obra de arte -
tudo é uma questão de perspectiva
e quando a perspectiva é extática
tudo o mais também é
lembrei então daquelas meninas
todas elas, amigas
aquelas mulheres fortes e cheias de vida
e pra elas dediquei uma canção
liguei o som no celular
abri o guarda-chuva vermelho pra combinar
e saí na rua a cantarolar os versos da liberdade
chovia
e ainda chove
e eu sou um sol cheio de esperança
de que um dia
tudo vai ser uma memória doce
em tempos concretos de amor
que chova o que tiver que chover,
pois a poesia é indecente o suficiente
pra fazer da chuva
o momento mais bonito do presente
(deixa chover
e vai, mundo,
levar no vento o meu desejo
faz ele chegar onde precisa
e deixe que essa loucura toda do dia a dia
nunca seja maior que a poesia)
chove
e minha sapatilha vermelha
descansa na garupa da bicicleta lá na sala
aguardando novos dias de vagar
chove
pra que o sol volte pleno pra iluminar os caminhos da errância