Poesia de outubro

o mar é minha calma
nos dias frios
tão mais meu
no maremoto interno
silábico, de mim

e me ensina
a ser
silêncio

queria saber
como não precisar das palavras
eu que me lambuzo nelas
até engasgar

pois depois de um tempo resistindo a ele,
o silêncio,
ao reencontro com o que desejo
de mais intenso,
a estar só

depois de algum tempo resistindo
a um choro que nunca veio...
eu chorei esse choro

chorei
porque não era possível não chorar
chorei como se chorasse pontos de exclamação

porque sou também aquele humano
demasiado humano
para além das ficções que criei

e minhas personagens me pareceram frágeis
quais ainda me servem? devo perguntar

um mito é em parte verdade
em parte uma grande miragem
e tudo o que eu mais queria agora
eu não diria à ninguém nessa hora

simplesmente porque um dia
ficará escancarado
nas estradas quentes da vida,
que só existe porque pulsa
(e até no gelo, é energia pura)
se assim ficar em mim
e se os pré-conceitos todos
alheios
não vierem impedir
que o muro, esse esteio,
seja derrubado

mas hoje eu quero apenas o silêncio
tão somente porque
amanhã
ele dará lugar ao maior ruído
que já fui capaz de produzir

então, me calo
e me acalmo com massagem
no olho da intuição

me espetam agulhas
e respiro mais lentamente
em busca do equilíbrio ausente

e na consulta do oráculo,
I Ching que me abre a mente,
descubro que, para mim,
está reservada a maior das alegrias

me calo
porque o som haverá de vir
e depois do ruído intermitente
se transformará
saindo da casca monofônica
em bela música polissêmica
para ser flor exuberante
que cresce
justamente
onde não pediram pra crescer


---

tanto nessa vida nos separa

tanto que nem sabemos de onde vem

meios de transporte inexistentes
redes descompensadas
conexões com interferências
línguas com lógicas diferentes

histórias
medos, dogmas
rigidez

tanto nessa vida nos separa
que ao haver o encontro
ela, a vida, deve ser celebrada
e quando ele vem
o cosmos se reorganiza
e faz música para ser dançada

pois não há nada que justifique mais a vida
que o momento em que se reúne os amigos
e todas aquelas pessoas queridas

em que um beijo desejado acontece
em que um abraço conforta
e uma voz amiga é ouvida

em que o mar se anuncia belo
para mergulharmos fundo
e o sol é visto da janela
naquele dia de sair
da casa para o mundo

em que uma chuva fina
embala o sono das crianças
e a penumbra no quarto dos apaixonados
à procura de uma rima

toda casa deveria ter uma mesa redonda
e uma cozinha cheia de gente
de onde sai aquele cheiro de bolo
e onde bebemos uma cerveja gelada

todos deveriam ter também aquele momento
em que se põe uma mochila nas costas
e se vagueia por aí
momento de se deslocar
a encontrar encontros novos

o desencontro lhe parece um padrão
num mundo de desventuras sofridas?

mas já dizia o poeta
a vida é a arte do encontro!
embora haja muitos desencontros pela vida...

pois o encontro
quando se dá
desloca a linha confortável
do que até então
era a nossa verdade iludida

e põe no chão a verdade
para dar lugar à intensidade

da qual não escapamos
queiramos ou não

a vida é a arte do encontro
embora tanto nos separe
nessa vida


---

bebo, em plena segunda-feira,
a música está alta
como eu
sou espaço
imensidão
e nada vai tirar de mim
essa amplidão
eu sou o próprio movimento da vida
a poesia escarrada
na cara do medo
pode vir
eu só tenho cores pra você
pode chegar perto
é isso mesmo que eu quero
eu estou aqui
feliz
curtindo tudo que é tão novo
que me faz
imperatriz
uma carta de tarô
da liberdade
eu escorro pelo céu
eu sou papel que se desfaz
quando encosta na pele
pois derrete
eu sou imã
atraio o improvável
eu sou tesão
de ser
eu mesma
fogo
e todo elemento que se queira
arde tudo ao meu redor
no rádio a canção é só minha
pra que eu multiplique
minha paixão
louca
e alucinada
pelo mundo todo

eu sou o próprio sol que brilha


---

talvez tenha eu, perdido,
os últimos delírios que escrevi pra ti

num pen drive quebrado
ficaram lá guardados
aqueles poemas que nunca serão lidos
muito menos reescritos
porque não existe, nessa vida,
a possibilidade da reescrita

tudo é sempre novidade
até mesmo quando a gente
reescreve
achando, em nossa ignorância
diante do universo,
que as coisas se repetem

o retorno existe
mas não sou Nietzsche
e acredito:
o retorno existe
pra mudar todo ponto de vista
e, assim, insiste

---

26 de outubro

saio em festa
não tenho mais dinheiro
o mês acabou

mesmo assim 
saio em festa

não vou mais viajar
vou me mudar

porque tudo já mudou

colocar no eixo algumas fitas
outras alegrias, deixar descarrilar

sou nesse fim de mês
uma mulher sem nenhum dinheiro
com o coração fisgado
por um aventureiro

o corpo enlouquecendo 
pra tudo que é lado

com negociações pra fazer
projetos para resolver
empréstimo pra pagar
coisas para encaixotar
yoga pra desenvolver
música para retomar
viagem pra organizar
alunos pra dar nota
fim de ano batendo à porta

muito acontece nesse corpo
que dança doido por aí
um samba, um rock, um xaxado
a procura de um açaí
que dê energia pra seguir

mas que importa a multitude
se é justamente nela que me encontro!

é por isso que hoje
quero gritar
que sou, como o louco,
a mais feliz das criaturas

pois a felicidade
descobri ser o clichê, verdade

ela está dentro

ela está em aceitar
o que a vida, sem escolha,
põe no seu caminho para ser seu
seja isso doce, vinho
ou o amargo de um domingo sozinho

ela é a lua em Santa Teresa
vista na descida da ladeira
e a incontrolável força do acaso 
do que tiver que ser

é fim de outubro 
e estou feliz

não sei o que será disso
mas o que for, terá sido 
infinitamente
maravilhoso
ter
vivido

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