O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade

Saudade deve ser uma herança que carrego dos antepassados portugueses. Sinto saudades de tudo, até do futuro. Ao menos é o nome que dou a uma certa ansiedade que se mistura a um sorriso bobo de quem gosta do que viveu ou do que vai viver, mesmo sem saber exatamente o que virá ou sem entender o que se passou. Acho que só sente saudades de verdade quem tem coragem de se lançar ao inevitável da vida. Saudade não é falta, é alegria do vivido, do outro e alegria do que virá. Aquela energia nos momentos difíceis, inclusive, e uma dose extra de coragem para viver o presente com toda a intensidade, para se construir grandes narrativas de vida. Hoje, ao menos, é assim que sinto. Amanhã, sabe-se lá... Certa que a saudade produz uma melancolia, mas a melancolia nos ajuda a lidar com a vida. É necessária para entendermos o quanto fazemos parte do universo. Deveríamos dar mais atenção a isso.  Saudade e melancolia tem uma relação siamesa, me parece... E, por sua vez, com a liberdade e a felicidade, duas questões na minha vida hoje. Elas estão dentro da gente. Permitir-se a saudade parece um caminho para esse encontro com a liberdade e a felicidade dentro, na dobra de nós mesmos, o único "lugar" onde acredito que elas possam ser encontradas.

Hoje senti uma inusitada saudade de Roma e suas ruínas. Roma foi um dos lugares onde mais me senti bem na vida. E foram só quatro dias. Mas o suficiente para eu me apaixonar pela cidade ou pelo que aquela cidade que tanto já viveu dizia à minha memória genética, afetiva, social, coletiva. À cultura e à natureza em mim. Sinto mais saudades de Roma, por exemplo, do que da Espanha, onde passei mais tempo na Europa, ou mesmo das cidades onde morei no Brasil. O que me diz que amor é coisa que não precisa de um tempo longo para acontecer. E que saudade e amor também têm uma intrínseca relação. Acho que só sentimos saudade do que amamos. Não esquecendo que é possível sentir amor também pelas dores vividas, aliás, inclusive, porque o amor também está em nós, e só faz sentido falar em amor quando falamos em aceitação do fluxo da vida. É possível amar a dor quando a dor liberta! Sentir amor por algo ou alguém me parece que nada mais é que um reconhecimento, a partir do outro e no outro, do amor-mundo-universal que reside em nós. Há conexões que tornam o amor tão evidentes, pela intensidade com que se estabelecem, que passamos a amar o objeto da conexão. Uma pessoa, uma cidade, um livro, o mar. Na verdade, estamos é expressando a razão de ser da vida. Amor. Será? Lembrando que o amor, para ser amor, precisa libertar.

Amor, saudade... Como tudo isso tem relação com a liberdade? Bom, tudo é insight ainda. Apenas sei que saudade, para mim, se tornou coisa boa. E encontrei em Mário Quintana uma boa explicação pra isto, que só a língua portuguesa soube sintetizar: "Para sempre é muito tempo. O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo..." Porém, como poeta, me pergunto se não invento a saudade. Se, na verdade, o que me move é inventar tudo o que sinto na poesia ou, quem sabe, exagerar... Afinal, o poeta é um fingidor. E inventa, como o título do poema de Hilda Hilst do qual me apropriei, viagem, retorno e morre de saudade... Mas se inventei a saudade ou não, fato é que ela está comigo. E para quem pretende fazer uma grande viagem daqui há um tempo, e outras muitas pela vida, será bom carregar um pouco desse tempo suspenso, para equilibrar com os momentos de novidade. Lembro sempre nessas horas paradoxais [em que convivem uma grande saudade e uma vontade de partir] do grande poeta português, como não poderia deixar de ser, já que fui por ele formada na poesia e na arte de sentir tudo de todas as maneiras e excessivamente. O que já virou um jargão do poema tão conhecido "Mar português" é para mim tão verdadeiro que é um mantra poderoso: tudo vale a pena, se a alma não é pequena... Já pensou no sentido desta frase? No quanto ela pode ser libertadora se conseguirmos ultrapassar seu conteúdo perigoso e doloroso? Seu Bojador?

Fiquemos, então, com a grande saudade de Pessoa... E mais a liberdade, o amor e a felicidade. Pois quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Permita-se a saudade. Permita-se o amor. Permita-se a liberdade. Ouse conversar consigo e abrir espaço para encontrar em si tudo o que talvez estivesse buscando no lugar "errado", fora de você. Mas com uma atenção, acredito: o fora é dentro, o dentro é fora...

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

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