Entre medianeras e amores líquidos, é carnaval!


É noite de domingo. Um domingo de carnaval e Oscar. Resolvi escrever sobre relacionamentos. Nada a ver? Tudo a ver! É um bom tema para o carnaval. E também para o cinema. De fato, este é um bom tema para um texto a qualquer hora. Garante leitores e boas tiradas! Mas, diria uma amiga ligada nos 220 volts: nada a ver é escrever no carnaval...

Brincadeiras a parte, a vontade de escrever esse texto surgiu quando eu estava assistindo ao filme Medianeras, há algumas horas atrás. E, claro, juntou-se à importância que tem essa palavrinha na vida de todo mundo, inclusive na minha, e que sempre tira o sono da galera: relacionamentos!

Desde que o filme foi lançado no cinema eu quis assisti-lo. Mas as oportunidades não apareceram. Até hoje, quando liguei minha smartv, acessei o tal do Netflix e lá estava o filme entre as sugestões. E veio muito bem a calhar. Permita-me um prelúdio: na sexta-feira, decidida a não querer ver carnaval na minha frente, eu arrumei uma mala e parti para Niterói, disposta a ir ao Rio apenas em um dia deste carnaval, e para um único motivo somente. Nesta mesma sexta, a noite, tive uma crise nervosa e não parava de tossir. Graças a uma irmã que estuda acupuntura, dormi em paz e acordei outra pessoa. Isto não é muito difícil de acontecer em se tratando desta que vos escreve, mas eu acordei – pasmem – com vontade de brincar o carnaval! Então, ontem à noite, peguei a mala que mal desfiz e voltei para o Rio, enfrentando um engarrafamento enorme e levando algumas horas para chegar em casa. Meus amigos sempre me dizem: só você, Vanessa! Quantas vezes já cheguei em festas e quis voltar... Quantas vezes eu já disse "não vou" e logo depois eu mudei de ideia. Penso: isto é péssimo quando se tem um relacionamento. Ou não! Diria um amigo: até que se encontre alguém como você. Digo eu para ele: desde que esta pessoa entenda que o mesmo direito dela é direito do outro. E por aí vai... Realmente, relacionar-se não é nada fácil. Mas quem foi que disse que a vida é fácil, certo? A vida é a vida. Somos o que somos. E para tornar tudo mais leve e fácil, primeiro a gente deveria se aceitar um pouco mais e, depois, aprender a ser menos dono do outro. Fora a carência, ansiedade etc etc etc etc. Só que tudo isto é vida, e eu poderia parar esse texto por aqui. Mas vamos lá, posso fazer melhor, eu acho...

De volta ao Rio de Janeiro, sendo motivo de piada de todos os amigos que não acreditaram que eu ia fugir do carnaval (isso porque não tive carnaval a maior parte da minha vida, mas a memória das pessoas é sempre curta... desculpem amigos, sofro do mal de ser sincera...), eu tive que improvisar uma fantasia de última hora. Afinal, carnaval sem fantasia não tem a menor graça. Já era bem tarde e o bloco seria pela manhã, mas eu abri o armário, fui experimentando o que eu tinha e, voilà, o momento poético-musical de uma recém-chegada de Viena definiu: eu seria a amada imortal de Beethoven. Catei um vestido branco, colares de pérola, uma flor preta e sóbria para adornar os cabelos, peguei o livro com as cartas de Beethoven e fiz uma cópia das páginas da carta para a amada imortal. Tema da minha fantasia: o amor! Nada mais clichê... Domingo de manhã, lá fui eu, entre amigos super empolgados e outros nem tanto. Se a brincadeira durou cinco horas, foi muito. Cheguei, chapei, cansei e parti. Encontrei uma amiga no metrô, fomos almoçar, falamos da vida. Assunto? Dou um doce se você adivinhar. Assunto principal nos bares e no WhatsApp nos últimos meses? Dou mais um doce se você adivinhar. Assunto quente no WhatsApp hoje no grupo das amigas? Muito bem! Bingo! 

Estou rodeada de amigos casados, descasando, em crise no casamento, terminando namoros de longa data. Parece que todo mundo resolveu entrar em crise ao mesmo tempo. Eu, a amiga solteira, que já dividiu as escovas de dentes por um bom tempo, teve paixões intensas e passou por poucas e boas até decidir que iria parar de sofrer, fico fazendo aquele papel de ouvido e de conselheira. Este último, às vezes, é risível. Mas, comecei cedo no assunto vida a dois, após uma adolescência complicada... Depois perdi a linha. Aí voltei para a vida a dois. E vi que não era para ser. E me apaixonei. E vi que não era para ser. E resolvi ficar sozinha. Aí me apaixonei de novo. E morri de medo de sofrer tudo de novo. E me atrapalhei por conta da minha ansiedade. Até me dar conta de que eu tinha comigo algo muito mais precioso e que merecia cuidado. Assim, já mais envelhecida em barris de carvalho, comecei a me acalmar. Não vou dizer que estou tirando nota dez nos quesitos harmonia e evolução, mas o júri está ligado que as coisas mudaram e que estou muito mais inteira. É que, finalmente, descobri que posso ser feliz sozinha. Claro que para um ansioso do signo de gêmeos, isso não basta. Porque eu quero ser feliz sozinha, com o outro, com os amigos, em todas as cidades que amo, comendo todas as comidas que gosto, bebendo todos os vinhos. Mas eu descobri também que a minha ansiedade já deu o que tinha que dar e que é chegada a hora de dar um chega pra lá definitivo nessa história. Ansiedade crônica é um dos grandes entraves ao bom fluir dos relacionamentos. Este conselho eu posso dar para os amigos em crise!

Relacionar-se é mesmo algo complicado. Mas não deveria ser, afinal, somos seres relacionais. A gente sempre diz que não deveria ser... É ou não é? Acredito que complicamos porque temos dificuldades de realmente aceitar o outro como outro, porque nossos traumas fazem das relações situações em que acabamos repetindo padrões, porque dá trabalho mudar e assusta se revelar (e relações sempre nos transformam e nos revelam), porque queremos que o outro seja nosso e seja como gostaríamos que fosse... Enfim, motivo não falta. Complicar é uma especialidade humana! Mas descomplicar também! Amém! E parece que quando a gente ama, queremos nos fundir no outro. Reconheço que esta é uma sensação maravilhosa. Mas, alto lá minha gente, o outro será sempre o outro, um grande mistério. Às vezes, nós mesmos somos um grande mistério pra gente, que dirá o outro... Querer se fundir no outro deveria vir separado de querer controlar o outro. Façamos essa gentileza ao planeta! Eu, você e todos. Além disso, essa sensação também traz toda a carga das experiências passadas, e a gente inevitavelmente associa uma coisa à outra e tende à repetição de padrões. Quando o padrão não se repete, a gente chega a estranhar. Outro dia mesmo eu vivi uma situação dessas. Eu estava super achando que ia sofrer (e sem muitos motivos, devo confessar a mim e a outra parte da história) e, como não me vi sofrendo, a primeira reação foi: tem alguma coisa errada. Depois eu percebi que tinha, na verdade, alguma coisa muito certa.

Medianeras é um filme que fala sobre os relacionamentos no mundo contemporâneo. Um mundo altamente conectado e, ao mesmo tempo, um mundo onde se multiplicam solitários. Zygmunt Bauman diz que vivemos a era do amor líquido, das relações rasas e mediadas. Bauman poderia ter escrito o roteiro do filme. Outro dia, estava eu na casa de um amigo muito especial. Alguém com quem é inevitável não tocar no assunto relacionamentos. Era madrugada, ele dormia e eu tinha perdido o sono. Havia um silêncio profundo. Eu estava sentada com o olho arregalado olhando para as paredes, os quadros e a fresta na janela por onde entravam os primeiros sinais de claridade. Olhei para o lado, sem muita emoção e um pouco de enjoo e vi um livro: Amor Líquido. No auge da minha insônia eu me pus a pensar sobre o livro, sobre as relações, cheguei a algumas conclusões, depois desfiz, depois cheguei a outras, o dia clareou e eu estava confusa. Este foi o primeiro livro do Bauman que eu li. Na época, discordei. Até concordei, mas sempre achei o Bauman um alarmista e, grosso modo, achava que ele estava exagerando. Hoje, já não penso mais assim e não sei muito bem de mais nada. Só sei de uma coisa: que eu acredito no amor. A forma como o vivemos é que parece ter mudado muito. Se existem relações rasas? Muitas. Como sempre existiram, embora eu concorde que a tecnologia facilite a multiplicação de relações superficiais e produza muitas inseguranças. A questão é: isto é um problema, como Bauman coloca? Talvez, pensando no sentido de comunidade que, segundo ele, se perde na modernidade líquida. Mas talvez seja cedo para dizer. Talvez seja romântico dizer que sim. Talvez seja frio dizer que não. Mas, se é problema, a pergunta traz outras perguntas mais importantes, genealógicas. Problema por quê? Para quê? O que o torna um problema? E trazendo para o âmbito da pessoa: é um problema para mim? Por quê? 

Não vou desenvolver este assunto em um texto de carnaval, mas minha pseudofilosofia não me deixa outra alternativa a não ser refletir um pouco mais. Parece-me interessante pensar sobre isso a partir do ponto de vista da expectativa. Em tudo na vida a gente põe expectativa. Disto é difícil fugir quando não se é monge budista. Na carreira, nos filhos, na repercussão de um trabalho ou estudo, nas amizades e, claro, nos amores. Conheci um gerente de marketing que disse uma vez que a vida se tornava mais fácil quando a gente gerenciava as expectativas. Na hora eu ri por dentro e minha vontade foi perguntar para ele se ele tinha tesão ou se ele sabia o que era se arrepiar ao ouvir uma música. Hoje eu prefiro dizer que ele não está certo, mas também não está errado. Não sei se é bem uma questão de gerenciar expectativas, mas sei que precisamos aprender a nos desapegar das grandes expectativas que criamos. E quando o assunto é relacionamentos, elas podem por tudo por água abaixo ou criar aqueles malditos duplos vínculos. Este sim me parece um aprendizado para nos tornamos seres menos neuróticos. Nossas neuroses e psicoses matam as relações. E, com elas, é muito fácil ficarmos presos em emaranhados que nada mais são que suas construções, que vamos desenvolvendo conforme o tempo vai passando, conforme vamos nos amoldando à cultura – sempre achei o melhor texto de Freud O mal estar na civilização... Acho que a maior parte do que a gente acredita, imagina e tem convicção é pura invenção. Nossa vida é nossa maior ficção. Mas posso estar enganada...

Pois bem, o carnaval está aí, época em que muitos relacionamentos começam, muitos terminam e multiplicam-se as relações rasas. Mas relações rasas podem gerar impactos profundos... Porém, eu sou uma moça que gosta mesmo é de relações que se aprofundam. As rasas têm o seu valor, mas acredito que só vivemos plenamente o humano e a vida quando vivemos relações profundas, inclusive com nós mesmos, porque é no mergulho que a gente se conhece mais e consegue ter mais vivência, mais contato com os mistérios e as maravilhas da vida. Claro que o conceito de profundo também é um problema, e não é com todo mundo que a gente consegue manter relações profundas. Profundas mesmo acho que dá para contar nos dedos. Mas, dizia Paul Valéry que "o mais profundo é a pele". Para Deleuze e Guattari, deslizar na superfície, multiplicar-se, é que tem uma conexão com a plenitude, e o conceito de profundo muda de figura quando o espaço liso, a superfície, ganha importância. Porém, acredito que o profundo não necessariamente é uma descida. Pode-se mergulhar para cima e para os lados. O profundo me parece mais uma abertura a se deixar tocar e modificar. De toda forma, rasa ou profunda, que seja uma relação sincera e desejada por todas as partes envolvidas, é o que eu desejaria. Talvez esta seja a questão mais importante. E, em sendo uma relação profunda, que não precise ser uma relação pesada. Parece que a gente andou por alguns séculos associando uma coisa com a outra. Culpa dos românticos? Não sei. Eu não sou romântica, embora eu seja a amada imortal de Beethoven, e serei para sempre. Eu também acredito em para sempre, assim como acredito no amor. Enquanto a gente está vivo, a vida é eterna e tudo o que sentimos também pode ser. O para sempre é circunstancial. Mas nem por isso deixa de ser o que é e de ter a força e a potência que tem de unir pessoas e criar mundos. Complicado? Quero acreditar que pode ser diferente. Afinal, é sempre isso que move os corações, acreditar que pode ser diferente. E pode! Enquanto estivermos vivos e houver desejo de diferença, sempre poderá ser diferente. Basta estarmos dispostos. 

Assim, vou chegando ao fim deste texto, feliz por ter um relacionamento sério com a palavra. Está aí o que é a minha grande companhia! E feliz por ter conseguido escrever em pleno carnaval. Eu que desisti dele, voltei atrás e desisti de novo, cá estou: vidrada no computador há algumas horas, este que se tornou uma extensão de mim, rodeada por uma purpurina que não deveria estar aqui, um copo de cerveja vazio, uma cama grande, livros, música e um espelho. Olhei nele agora, vi minhas olheiras, percebi que é preciso trocar o piercing porque o meu está abrindo toda hora e lembrei o quanto eu preciso voltar a cuidar da minha ansiedade, e que já sei o que devo fazer pra isso, basta apenas começar... Olhei também para a cama e constatei o quanto ela é grande e pensei que, grande desse jeito, merecia ter alguém sempre ali com quem eu pudesse "disputar o espaço". Mas penso também que o amor acontece quando tem que acontecer e que a cama voltará a ser compartilhada na hora certa. E lembro o quanto eu gosto de me esparramar nela sozinha, tanto quanto eu gosto de ter alguém do lado. Mesmo que eu não saiba dormir de conchinha - embora eu tente, mas dura poucos minutos. Gostaria era de dormir com mais facilidade, mas eu também já sei o que fazer para isso. E não é tomar Rivotril... Bem, mas como concluir um texto sobre algo que não dá para se chegar a nenhuma conclusão num ensaio, no carnaval, quiçá, na vida? Vamos lá, vou tentar.

Acho que bom mesmo é acordar, se olhar no espelho e cantar para si mesmo o refrão delicioso do Ultraje a Rigor: “eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim”. Mas, tão bom quanto é ter também para quem cantar Fogo e Paixão do Wando. Dure o amor uma semana, um mês, um ano ou a vida inteira. Comece rápido, devagar, de forma fácil ou aos solavancos. O que importa é que ele exista e que nos deixemos tocar por ele. E aceitemos que tudo dura o tempo que tem que durar. É fácil. Só é complexo. Mas a vida não teria a menor graça se não fosse assim. É o que a gente sempre diz também...

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