O amor do lobo e do cordeiro
um lobo sempre reconhece outro lobo
pelo faro, pelo olho no olho
um lobo sabe que encontrou um outro lobo
quando sente no outro – como um calafrio –
a carne e os ossos de um grande desafio
o da própria existência
quando vê nele a mesma solidão – necessária –
e a liberdade rara de saber que a vida transcorre
em ciclos de início e de morte
que nutrem o amor infinito
que carregam em sua sorte
mas um lobo enfraquecido,
levado para longe de seu alimento,
pode enganar-se por inteiro
e ver um lobo quando encontra um cordeiro
um cordeiro também
sempre reconhece outro cordeiro
nasceram para o rebanho
e do rebanho jamais sairão
regozijam-se nele
e, felizes, mantêm fechados e nada atentos
seus pequenos olhos remelentos
todo cordeiro tem vocação para ditador
não suporta como os lobos se fortalecem de sua própria dor
nem sua calma solidão na estepe
nem como correm juntos como se corressem livres
e abafam com sorrisos falsos
toda a inveja dos olhos abertos das matilhas
mas crianças podem ser facilmente presas de cordeiros
quando enfraquecidas
um cordeiro parece saber muito bem
como enganar um lobo esfomeado de primeira
- parecendo também um lobo -
pois cordeiros são excelentes mentirosos
tanto mentem a si mesmos
e, por isso, é que podemos ver por aí
tantos lobos em peles de cordeiros
esfomeados, alimentam-se da comida alheia
e acabam por acreditar que também
nasceram cordeiros e estão presos em teias
ensinou-nos, a história,
que todo lobo é mau
e, de tanto ser ferido por cordeiros invejosos,
podem vir, os lobos, a acreditar
em tais degredos jocosos
mas lá no seu íntimo,
bem lá onde cordeiro nenhum chega,
sempre há o uivo derradeiro
um dia, mesmo alimentado por cordeiro,
o lobo sente o chamado da lua
e para ela uiva em reencontro a sua morada
um lobo sempre reconhece outro lobo
mesmo quando em pele de cordeiro
é assim que, movido por amor,
pacientemente,
desenreda cada fio da falsa pele
no outro e, em si mesmo, sobreposta
e, de olhos bem abertos,
sem medo das mandíbulas que se lhe apresentarão
desnuda o corpo de quatro patas
e põe-se a correr na estepe
a celebrar a madrugada
da qual o cordeiro, cheio de medo,
e por não ver a beleza do grande segredo,
prefere se manter distante,
dançando no estábulo, quadrado,
a dança regrada que lhe foi ensinada
é por isso que lobos e cordeiros
jamais podem ser amantes verdadeiros
mesmo quando o cordeiro assim insiste
e faz de tudo para que o lobo acredite
quando o lobo consegue alimentar-se
e, novamente, faz-se forte,
sua natureza torna insuportável
viver a vida sem encarar de frente a morte
só a morte dá origem ao amor
e só pode haver amor quando se encara o horror
é preciso a cada lobo,
matar em si, o cordeiro que camufla o necessário tremor