Saga da autoreferência


broto como flor de cacto
hoje nasço de um mandacaru
planta forte
carregada de espinhos
eu floresço sonhos
concretude
plena sorte
de ser quem sou

mas foi preciso muito
foi preciso que esse espinho
cravasse no meu peito
a tua seiva
e derramasse nela
um ideal fugaz de vida
para que eu pudesse
construir minha fortaleza

devaneio...

mas meu muro
não é muralha
e tem tantas portas
quanto luzes acesas

passei por muitas estradas

naquela juventude já perdida
vi tantos se perderem
para nunca mais voltarem
eu definhei meu corpo novo
em copos e garrafas
vi o êxtase tomar os seres
aquela alegria que se tornaria mágoa
e vi uma dessas alegrias
se tornando pó
até desaparecer
morta
deixando frutos
mas levando sua juventude embora
magra, sofrida
e quão cheio de doçura ele era...
mas teve que partir
carregado pelas pedras

e então, eu ouvi um não
que jamais esqueci
nunca um não me fez tão feliz
e me libertou para que eu me descobrisse
liberta

já faz tanto tempo

eu fui atriz
e me apaixonei

sempre me apaixono

sou flor
que pega fácil
não precisa de muita luz
mas é necessária uma boa rega

e me lembro dos lugares onde fui
eu que andei nômade desde sempre

até hoje, só sei me definir
pelo movimento
nunca soube o que é ter raiz
embora uma terra me pertença
porque muito por lá passei

terra do império
de cheiro do musgo
o frio, a neblina
aquilo me define
também, ainda
poesia que vem de dentro
do meu silêncio
de quem nasceu na serra
e aguardava, criança,
as luzes de natal

e me defino também
carnaval

tio boêmio
mãe baladeira
avó carnavalesca
que fazia festa no quintal
atores, artistas de circo
histórias a dar com o pau

primos
música
irmãs
muita gente, muita fala
mulheres
mulher e família
sinônimos em meu universo
tantas
elas construíram, dia a dia
minha história

e, assim, fui seguindo
eu com eles
eu sem eles
sempre perto
sempre distante

"vanessa?
a gente até esquece dela"...
"não, não sei cadê vanessa"

estava eu, submersa
na água
no livro
no desenho
havia um mundo que era só meu
e nele havia sempre música

cá está ele,
ainda comigo,
e carrega as histórias todas daquela gente
que carrega parte do meu coração

e tenho uma avó com muito para contar agora
e mãe e pai que se preocupam
porque nunca sabem onde estarei na próxima hora
tive um avô
que me ensinou a desenhar

eu gosto mesmo é de fluir
sem rumo
com rumo
ir

tenho irmãs com quem compartilho
uma experiência de amor profundo
e não há nada mais profundo
que amar o que é tão diferente de você

e primos
muitos
histórias diversas
cantávamos juntos
brincávamos
torci a perna

e lembro do cheiro de mato

sempre que uma leve chuva cai
no rio de janeiro
eu me lembro aquela bruma poética
da chuva da serra
o cheiro de terra
eu roubando laranjinhas na fábrica caseira
correndo pela rua quando o tempo
era o tempo longo da brincadeira

há tanto que carrego comigo
e vem, vez em quando,
um certo desespero
de, de repente,
ver que o tempo passa
e já se passou
tanta vida em mim

mas, alguém que gosto tanto,
eu mesma, hoje sou
depois de tanto

sofri,
chorei
perdi
ganhei
o clássico
da vida de todo mundo

tive poucos grandes amores
e quis tanto todos eles

hoje, sei que amar
é essa delícia que vem
e vai
e pode ser, quem sabe,
um dia fique

é o que deseja hoje
minha estirpe

eu
que talvez tenha filhos
ou não

eu que navegarei

tive grandes amores
e os amei
tive grandes paixões
e quase morri

tive amigos
vários ao andar por aí
tenho grandes amigos
e grandes amigos
também são grandes amores

com eles eu posso ser
delírio

alguns antigos
outros chegaram agora
e já são festa no meu ser
fazem cada medida da vida
valer acordar todos os dias
transformando medidas
em desmedidas

como cada tudo que amo
eu que amo tudo nessa vida

e o mar, este amor que é eterno
com quem jamais me desentendi
fui lançada em correntezas
levada
mas sabia eu que o mar
era imprevisível
por isso o amor veio
eu e o mar somos um
inteiros
amo o que me arrasta
amo tudo que lhe diz respeito

porque não posso conceber
a vida como qualquer coisa óbvia
como se concebe por aí

a vida é tão cheia de possíveis
que posso fazer dela poesia
a toda hora

eu crio a vida
ficções
arrisco
eu mostro tudo que escrevo
eu digo o que sinto
eu concebo
eu falo em palestras
poesia
dou aula como se fizesse festa
não existe seriedade que
me faça
esquecer o que sou

não existe medo
que bloqueie o meu desejo

o que existe hoje é força
a me lançar em busca do que ensejo

Postagens mais visitadas deste blog

Depois da conversão da noite

Bio e micropolíticas

Planeta Mar